Há algumas semanas, o escritor Miguel Carqueija remeteu o volume 12 do mangá Ga-Rei – último da série publicada integralmente no Brasil pela Editora JBC –, com o pedido que eu o resenhasse neste blogue. Entusiasta dos mangás shojo, ou seja, histórias em quadrinhos dirigidas às leitoras adolescentes, Carqueija elogiou várias vezes as sutilezas de enredo, personagens e arte desse trabalho, assinado por Hajime Segawa, originalmente publicado a partir de 2005 na revista Shonen Ace, da editora japonesa Kadokawa Shoten, com grande sucesso.
Alguns dos conceitos básicos da obra eu só soube através do próprio Carqueija, pois a única parte que efetivamente li dessa hq foi mesmo a edição final, em que a história se encerra num clímax catastrófico que envolve todo o planeta. Explico: Ga-Rei fala sobre a relação entre duas garotas, Tsuchimiya Kagura e Isayama Yomi, irmãs de criação e estudantes de uma escola de magia, mais ou menos ao estilo de Harry Potter. Durante a história, Kagura e Yomi vão desenvolvendo seus poderes, que acabam por se revelar faces antagônicas de uma mesma energia que, desequilibrada pelos sofrimentos das meninas, pode levar o mundo à destruição total.
Pela leitura de seu final, Ga-Rei parece resumir-se fundamentalmente a essas duas personagens. Os demais são meros coadjuvantes, que se esforçam por ajudar, mas mal conseguem sobreviver em meio às forças avassaladoras liberadas pelas garotas.
Sempre impressiona a facilidade como os autores dos mangás conseguem evocar forças apocalípticas que estremecem as bases da realidade cósmica, e Ga-Rei não é diferente. Aqueles que apreciam esse tipo de narrativa vão certamente se deliciar com as cenas de destruição em massa explicitadas pela arte de Segawa. Contudo, a recorrência desse recurso já não surpreende mais. Histórias clássicas como Akira e A morte do demônio foram bem mais fundo e mais longe no processo, da mesma forma que o embate entre dois pólos opostos e igualmente poderosos já foi melhor explorado em histórias como Death Note e Blood Plus, por exemplo.
O que chama a atenção em Ga-Rei é a fauna de seres mágicos curiosíssimos, que perecem ter mais a oferecer do que o pouco que pode ser visto no volume final, bem como as gigantescas manifestações do "Miasma da Naraku", um tipo de energia da natureza que toma formas diversas conforme a região, como, por exemplo, um guerreiro de três faces e seis braços em Tokio, um Ganexa obeso na Índia e uma deformada Estátua da Liberdade em Washington, entre outros.
A princípio, a história parece sugerir ao leitor ocidental que Kagura seja um tipo de redentora da humanidade, uma alegoria das tradições judaico-cristãs, mas o desfecho revela que não se trata absolutamente disso, mas sim de uma releitura da própria filosofia oriental, na qual não falta inclusive o recorrente símbolo do yin-yang, na forma de duas raposas entrelaçadas, uma negra e outra branca que, por sua vez, remete a outra recorrente figura japonesa, a mítica raposa de nove caudas.
Ga-Rei esforça-se em estabelecer o conceito de que não há um Deus no controle das coisas e que a vida é apenas uma concessão da natureza e, se não estiver equilibrada, pode levar o mundo à catástrofe. Também acena com a ideia de que a decisão e empenho de um único indivíduo pode fazer a diferença nos momentos de exceção. Ainda que se reconheça a dedicação de Segawa em evocar valores morais como amizade, candura e fidelidade, Ga-Rei é uma história de pretenções doutrinárias, ainda que bastante diluídas em um cenário de fantasia, ação e aventura, o que não deixa de ser uma característica dos mangás de forma geral. O sucesso dessa arte entre os jovens brasileiros ansiosos por acreditar em alguma coisa, deve ter muito a ver com isso.
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