Assembleia estelar: Histórias de ficção científica política, Marcello Simão Branco org. 408 páginas. Capa Vagner Vargas. São Paulo: Devir Livraria, 2011. Coleção Pulsar.
Depois de dois anos de trabalho entre os primeiros convites aos autores e o lançamento do volume, a antologia Assembleia estelar chegou bem mais parruda do que se imaginava a princípio, com quatorze textos, entre contos e noveletas, incluindo trabalhos dos importantes autores norte-americanos Bruce Sterling, Orson Scott Card e Ursula K. Le Guin (1929-2018).
A ideia nasceu do envolvimento do organizador com a política, uma vez que Marcello Simão Branco, além de respeitado estudioso de ficção científica, é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e professor na Unifesp nessa disciplina. Nada mais natural, portanto, que se lançasse à tarefa de aproximar suas duas paixões. Branco editou por muitos anos o prestigioso fanzine de ficção científica e horror Megalon e organizou uma das mais importantes antologias temáticas brasileiras, Outras copas outros mundos, publicada em 1998 pela Editora Ano-Luz. Desde a suspensão do Megalon, fanzine que editou entre 1988 e 2004, Branco dedicou-se exclusivamente ao Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, do qual é um dos autores, e sua volta à aorganização literária criou muita expectativa.
Política é um tema que sempre recebeu interesse dos autores de fc. Obras clássicas e maiúsculas no gênero, como Tropas estelares (Starship troopers, 1959) e Estranho numa terra estranha (Stranger in a strange land, 1961) de Robert A. Heinlein, O mundo de Zero-a (The world of Null-a, 1948), de A. E. van Voght, Admirável mundo novo (Brave new world, 1932) de Aldous Huxley, 1984 (Nineteen eighty-four, 1949) de George Orwell, A muralha verde (We, 1920), de Evgeny Zamiátin, e Os despossuídos (The dispossessed: An ambiguous utopia, 1974), de Ursula Le Guin, entre outros, atestam o vigor que o tema detém dentro do gênero. Contudo, no Brasil, há poucos exemplos nessa linha, e os que existem pertencem à produção de autores do mainstream, que o abordaram de maneira transversal e alegórica, como Zanzalá (1936), de Afonso Schmidt, Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão, Fazenda Modelo (1974), de Chico Buarque de Holanda, e Sombras de reis barbudos (1972), de José J. Veiga. Faltava mesmo que alguém demonstrasse que o tempo da censura e das perseguições políticas passou e podemos voltar a falar abertamente sobre política no Brasil, especialmente dentro do ambiente especulativo, que permite um leque amplo de abordagens criativas.
Além dos estrangeiros já citados, aos quais também se une o escritor português Luiz Filipe Silva, Branco selecionou textos de autores brasileiros cujos nomes já são bastante associados ao gênero, como André Carneiro e Daniel Fresnot. Contudo, a maior novidade da antologia é um texto do autor mainstream Fernando Bonassi, um verdadeiro achado do antologista.
O volume abre com um longo ensaio “Afinidades eletivas entre ficção científica e política”, do organizador, contextualizando a proposta e detalhando exemplos históricos na literatura estrangeira e nacional.
O primeiro conto é “A queda de roma, antes da telenovela”, de Luís Filipe Silva, um dos grandes nomes da fc lusitana, numa história sobre o ocaso do último político “à moda antiga”, ou seja, que atua num sistema representativo, uma vez que a atividade política se transferiu para uma nova tecnologia, não exatamente melhor conforme o ponto de vista.
Em seguida temos o excelente “Anauê”, de Roberval Barcellos, provavelmente o autor brasileiro mais politizado de sua geração. É uma história alternativa de um Brasil governado por uma ditadura nacionalista, visto através de um burocrata do Partido Integralista que tem de optar entre manter o seu status quo ou sua integridade moral frente a um terrível programa de higiene social.
“Gabinete blindado”, do veterano autor da Primeira Onda, André Carneiro, é o melhor texto da antologia. Com um estilo elegante e surpreendente, que muitos ainda acreditam não ser possível usar nos gêneros especulativos, Carneiro revive os Anos de Chumbo da ditadura militar, na história dos integrantes de um aparelho de guerrilha em plena operação.
“Trunfo de campanha”, de Roberto de Sousa Causo, é um texto do ciclo de Jonas Peregrino, space opera que o autor vem desenvolvendo em episódios espalhados por diversas publicações. Aqui, Jonas tem que enfrentar as intrigas políticas de um figurão que quer se aproveitar de sua imagem de herói de guerra, numa história se assemelha às aventuras de espionagem ao estilo James Bond, porém com raios laser.
“Diário do cerco de Nova York”, do franco-brasileiro Daniel Fresnot, já é um clássico, visto na coletânea O cerco de Nova York e outras histórias (Alfa-Ômega, 1984). Conta a história de um escritor francês que tenta sobreviver em meio ao fogo cruzado da uma nova guerra civil nos Estados Unidos, que eclodiu depois que o prefeito da cidade de Nova York, apoiado por seus eleitores, decide descumprir ordens que recebe da União. A cidade é cercada por forças federais e atacada de forma avassaladora, o que a transforma numa reedição do gueto de Varsóvia.
Ataíde Tartari constrói uma alegoria às eleições majoritárias brasileiras de 2010 em “Saara Gardens”, na qual uma grande empresa tenta destruir o prestígio de uma candidata ambientalista que pode ser um grande problema, caso seja eleita.
Miguel Carqueija se apresenta com o curtinho “Era de aquário”, que não foge a seu estilo humorístico e irônico, sobre um tempo em que o esporte nacional brasileiro é assassinar políticos em atentados públicos.
Em “A evolução dos homens sem pernas”, Fernando Bonassi também investe na ironia e no humor para descrever os motivos que levaram os homens do futuro a desenvolverem mutações bizarras, mas talvez esses homens já estejam aqui, agora mesmo.
Assembleia estelar traz para os novos leitores a nova versão da noveleta “A pedra que canta”, de Henrique Flory, originalmente visto na coletânea de mesmo nome publicada pela Editora GRD em 1991. Trata-se da história de um jovem que recebeu um implante especial e pode literalmente fazer a “pedra cantar” numa ação que vai acabar com a guerra entre o Brasil e a Argentina.
Em “O dia antes da revolução”, Ursula K. Le Guin volta ao universo de seu romance Os despossuídos com uma prequela que mostra os últimos dias de Laia Odo, pensadora política que construiu o sonho anarquista de Anarres. Tal como o romance, este conto foi premiado com Hugo e Nebula, e é certamente o texto mais importante desta antologia. O conto foi originalmente visto em 1974 na revista Galaxy e recebeu tradução de Roberto de Sousa Causo.
A Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira está aqui representada por “O grande rio”, do autor mineiro Flávio Medeiros Jr, que elaborou uma ucronia intrincada para contar sua versão do assassinato do presidente John F. Kennedy.
O texto mais longo da antologia é a novela “O originista”, de Orson Scott Card, que também investe numa prequela, porém não de um romance próprio como fez Le Guin, mas ao clássico Fundação, de Isaac Asimov. O texto fez parte da antologia Foundations friends, organizada em 1989 por Martin H. Greenberg. Conta, de forma muito íntima, como o intelectual Hari Seldon, criador da Fundação e da Psico-História, desenvolveu o plano secreto de resistência ao governo totalitário do Império Galáctico a partir de um gigantesco mecanismo de pesquisa eletrônica que se parece muito com o Google moderno. A tradução é de Carlos Angelo.
“Questão de sobrevivência”, um dos textos mais publicados do escritor jundiaiense Carlos Orsi, também se insere no conflito entre um grupo de resistência e um governo totalitário.
A chave de ouro que fecha a antologia é “Vemos as coisas de modo diferente”, conto do papa cyberpunk Bruce Sterling, originalmente publicado em 1989 na coletânea Semiotext[e] sf. A história faz uma extrapolação do conflito ocidente-oriente contando sobre um jornalista de um próspero mundo árabe que vem aos Estados Unidos – que está mergulhado em uma profunda crise econômica – para entrevistar um superstar do rock. A tradução é de Roberto de Sousa Causo.
Como se vê, trata-se de um livro de peso, tanto pelos autores quanto pelos textos reunidos, sendo uma das mais importantes antologias de ficção científica publicadas no Brasil nos últimos anos.
sexta-feira, 31 de março de 2023
quinta-feira, 30 de março de 2023
Resenha do Almanaque: O vampiro da Mata Atlântica, Martha Argel
O vampiro da Mata Atlântica, Martha Argel. 176 páginas. Capa de Billy Argel. São Paulo: Idea Editora, 2009.
Já tem algum tempo que a vampiromania invadiu o fandom brasileiro. Na verdade, suas raízes são antigas, vêm das seções de cinema nas madrugadas da tv que exibiam semanalmente os clássicos da Hammer, histórias de estilo gótico com vampiros que geralmente eram nobres da Europa oriental.
No ambiente da literatura popular para mulheres, romances fogosos com vampiros e lobisomens nunca foram novidade, mas explodiram sob a influência dos livros da franquia Entrevista com o vampiro (Interview with the vampire, 1976), de Anne Rice, que propunha um vampiro humanizado, sensível e ansioso por amor e carinho. O vampiro deixou de ser uma aberração para se tornar um objeto de desejo, com promessas sexo selvagem e amor literalmente eterno. Nos anos 1980, especialmente depois de filmes como Fome de viver (The hunger, 1983), a liberação feminina chegou ao vampirismo. Antes relegadas a situação de escravas do vampirão chefe, as vampiras ganharam autonomia e passaram a ter seu próprio séquito.
As editoras de romances só perceberam que estavam dormindo no ponto em 2001, quando foi lançado o primeiro volume da franquia Os sete, do escritor paulista André Vianco, que atraiu a atenção dos leitores e vendeu dezenas de milhares de exemplares. Desde então, antologias, novelas, romances, trilogias com histórias de vampiros, de autores brasileiros estrangeiros, têm brotados nas estantes como cogumelos. Porém, apesar da grande atividade no gênero, os escritores elegeram unanimemente o modelo dos vampiros humanizados, como os de Entrevista com o vampiro. Realimentados por outras franquias estrangeiras, a coisa só fez acirrar-se, ao ponto de o mito original do vampiro ter praticamente se perdido.
Enfim, uma luz, embora o termo não seja totalmente adequado. A escritora paulista Martha Argel, uma especialista em ficção fantástica, resolveu que era hora de retomar o mito a partir de suas raízes primitivas. E o resultado foi o romance O vampiro da Mata Atlântica.
Martha iniciou a carreira de ficcionista escrevendo fc. Seus primeiros trabalhos saíram nos livros virtuais Lugar de mulher é na cozinha, antologia organizada pela própria Martha, e a coletânea individual Contos improváveis, ambas publicadas em 2000 pela editora Writers. Os vampiros começaram a predominar seu trabalho a partir do romance Relações de sangue (Novo Século, 2002), seguido da coletânea O vampiro de cada um (da autora, 2003). Marta afastou-se um tantos dos sugadores em 2005, com a coletânea virtual Olhos de gato (Writers) e, em 2006, com O livro dos contos enfeitiçados, ambos com histórias de fantasia de horror.
Enfim, retornou em grande estilo aos vampiros com O vampiro da Mata Atlântica, uma história que investe num monstro nada glamouroso, nascido do ódio, sem qualquer interesse além de matar e comer. Martha também inova ao estabelecer a origem do vampiro em uma mitologia diversa. Não há, neste vampiro, a convencional mordida que transmite o vírus maldito. Aqui, a maldição é literal, decorrente de suas próprias maldades humanas. Morto, renasce monstro faminto que assombra seu vilarejo localizado num remoto trecho na região do Alto Ribeira, até que este, abandonado pelos moradores, fica deserto e em ruínas. O lugar torna-se tabu e os demais habitantes da região não se aproximam dele.
Pelo menos até que dois pesquisadores universitários, Xavier Damasceno e Júlio Levereaux, aparecem por lá, contratados por uma empresa para realizar um levantamento ecológico na região, com vistas a implantação de uma área de preservação ambiental. Equipados e com muitos suprimentos, querem aproveitar a oportunidade para também realizar estudos pessoais sobre os animais nativos, que pode valer pontos acadêmicos importantes. Leveraux é apaixonados por mamíferos, especialmente morcegos, dos quais sabe tudo e mais um pouco, enquanto Xavier é ornitólogo, interessado nas raríssimas harpias, animais em grave risco de extinção que foram avistadas na área.
O tempo chuvoso dificulta a chegada ao local e fica claro aos cientistas que eles não vão conseguir sair de lá antes do fim das chuvas. Como não estão com pressa, montam acampamento nas ruínas do vilarejo e começam a explorar as ricas flora e fauna locais.
Embevecidos pela natureza exuberante e concentrados no trabalho, não percebem que algo não vai bem por ali. Antes que possam se proteger, o vampiro investe sobre Leveraux, deixando-o ainda vivo, mas fora de ação. Fica então a cargo do inseguro Xavier a responsabilidade por enfrentar a criatura, num jogo mortal que Xavier não tem a menor chance de vencer. O isolamento, a rusticidade do lugar, o clima instável e a falta de recursos favorecem em tudo ao predador, que se diverte com as pífias estratégias de Xavier para proteger a si e a seu colega ao longo de cada noite de terror.
A única esperança de Xavier é sua criatividade e uns parcos conhecimentos sobre a lenda dos vampiros que Leveraux lhe explicou rapidamente, durante o primeiro dia de pesquisas. Mas isso pode não ser o bastante.
Muito inteligentemente, Martha aproveitou sua própria experiência acadêmica como ornitóloga para construir a introdução da história. A primeira metade do romance mal toca no assunto dos vampiros. Ela a usa para apresentar os personagens e suas motivações pessoais, com grande sucesso. Uma antiga rivalidade entre os dois cientistas tempera o relacionamento, da mesma forma que a cuidadosa descrição da Mata Atlântica, muito bem conhecida pela escritora, e a descrição detalhada da metodologia de pesquisa dos cientistas ajuda a dar verossimilhança ao ambiente. Quando finalmente o monstro se revela, toda a incredulidade do leitor já foi desmontada. Ficamos rendidos ao horror daquela criatura improvável e completamente real, tanto nas assombradas noites de Xavier, como nos nossos próprios pesadelos.
Martha, que sempre teve um texto correto e técnico, ganhou uma consistência inédita neste romance devido a ter situado a história em um ambiente familiar às suas experiências pessoais. É inclusive pertinente supor que algumas das situações descritas sejam autobiográficas.
O volume flerta com o mercado paradidático ao inserir, depois da história, artigos instrutivos sobre a Mata Atlântica, a região do Alto Ribeira e seus animais, com atenção especial para os morcegos, é claro.
Também cabe aqui ressaltar o belo trabalho de direção de arte, com uma imagem fabulosa na capa assinada pelo respeitado designer Billy Argel, irmão da aurora, além de um acabamento gráfico perfeito, que é padrão nas edições da Idea.
Já tem algum tempo que a vampiromania invadiu o fandom brasileiro. Na verdade, suas raízes são antigas, vêm das seções de cinema nas madrugadas da tv que exibiam semanalmente os clássicos da Hammer, histórias de estilo gótico com vampiros que geralmente eram nobres da Europa oriental.
No ambiente da literatura popular para mulheres, romances fogosos com vampiros e lobisomens nunca foram novidade, mas explodiram sob a influência dos livros da franquia Entrevista com o vampiro (Interview with the vampire, 1976), de Anne Rice, que propunha um vampiro humanizado, sensível e ansioso por amor e carinho. O vampiro deixou de ser uma aberração para se tornar um objeto de desejo, com promessas sexo selvagem e amor literalmente eterno. Nos anos 1980, especialmente depois de filmes como Fome de viver (The hunger, 1983), a liberação feminina chegou ao vampirismo. Antes relegadas a situação de escravas do vampirão chefe, as vampiras ganharam autonomia e passaram a ter seu próprio séquito.
As editoras de romances só perceberam que estavam dormindo no ponto em 2001, quando foi lançado o primeiro volume da franquia Os sete, do escritor paulista André Vianco, que atraiu a atenção dos leitores e vendeu dezenas de milhares de exemplares. Desde então, antologias, novelas, romances, trilogias com histórias de vampiros, de autores brasileiros estrangeiros, têm brotados nas estantes como cogumelos. Porém, apesar da grande atividade no gênero, os escritores elegeram unanimemente o modelo dos vampiros humanizados, como os de Entrevista com o vampiro. Realimentados por outras franquias estrangeiras, a coisa só fez acirrar-se, ao ponto de o mito original do vampiro ter praticamente se perdido.
Enfim, uma luz, embora o termo não seja totalmente adequado. A escritora paulista Martha Argel, uma especialista em ficção fantástica, resolveu que era hora de retomar o mito a partir de suas raízes primitivas. E o resultado foi o romance O vampiro da Mata Atlântica.
Martha iniciou a carreira de ficcionista escrevendo fc. Seus primeiros trabalhos saíram nos livros virtuais Lugar de mulher é na cozinha, antologia organizada pela própria Martha, e a coletânea individual Contos improváveis, ambas publicadas em 2000 pela editora Writers. Os vampiros começaram a predominar seu trabalho a partir do romance Relações de sangue (Novo Século, 2002), seguido da coletânea O vampiro de cada um (da autora, 2003). Marta afastou-se um tantos dos sugadores em 2005, com a coletânea virtual Olhos de gato (Writers) e, em 2006, com O livro dos contos enfeitiçados, ambos com histórias de fantasia de horror.
Enfim, retornou em grande estilo aos vampiros com O vampiro da Mata Atlântica, uma história que investe num monstro nada glamouroso, nascido do ódio, sem qualquer interesse além de matar e comer. Martha também inova ao estabelecer a origem do vampiro em uma mitologia diversa. Não há, neste vampiro, a convencional mordida que transmite o vírus maldito. Aqui, a maldição é literal, decorrente de suas próprias maldades humanas. Morto, renasce monstro faminto que assombra seu vilarejo localizado num remoto trecho na região do Alto Ribeira, até que este, abandonado pelos moradores, fica deserto e em ruínas. O lugar torna-se tabu e os demais habitantes da região não se aproximam dele.
Pelo menos até que dois pesquisadores universitários, Xavier Damasceno e Júlio Levereaux, aparecem por lá, contratados por uma empresa para realizar um levantamento ecológico na região, com vistas a implantação de uma área de preservação ambiental. Equipados e com muitos suprimentos, querem aproveitar a oportunidade para também realizar estudos pessoais sobre os animais nativos, que pode valer pontos acadêmicos importantes. Leveraux é apaixonados por mamíferos, especialmente morcegos, dos quais sabe tudo e mais um pouco, enquanto Xavier é ornitólogo, interessado nas raríssimas harpias, animais em grave risco de extinção que foram avistadas na área.
O tempo chuvoso dificulta a chegada ao local e fica claro aos cientistas que eles não vão conseguir sair de lá antes do fim das chuvas. Como não estão com pressa, montam acampamento nas ruínas do vilarejo e começam a explorar as ricas flora e fauna locais.
Embevecidos pela natureza exuberante e concentrados no trabalho, não percebem que algo não vai bem por ali. Antes que possam se proteger, o vampiro investe sobre Leveraux, deixando-o ainda vivo, mas fora de ação. Fica então a cargo do inseguro Xavier a responsabilidade por enfrentar a criatura, num jogo mortal que Xavier não tem a menor chance de vencer. O isolamento, a rusticidade do lugar, o clima instável e a falta de recursos favorecem em tudo ao predador, que se diverte com as pífias estratégias de Xavier para proteger a si e a seu colega ao longo de cada noite de terror.
A única esperança de Xavier é sua criatividade e uns parcos conhecimentos sobre a lenda dos vampiros que Leveraux lhe explicou rapidamente, durante o primeiro dia de pesquisas. Mas isso pode não ser o bastante.
Muito inteligentemente, Martha aproveitou sua própria experiência acadêmica como ornitóloga para construir a introdução da história. A primeira metade do romance mal toca no assunto dos vampiros. Ela a usa para apresentar os personagens e suas motivações pessoais, com grande sucesso. Uma antiga rivalidade entre os dois cientistas tempera o relacionamento, da mesma forma que a cuidadosa descrição da Mata Atlântica, muito bem conhecida pela escritora, e a descrição detalhada da metodologia de pesquisa dos cientistas ajuda a dar verossimilhança ao ambiente. Quando finalmente o monstro se revela, toda a incredulidade do leitor já foi desmontada. Ficamos rendidos ao horror daquela criatura improvável e completamente real, tanto nas assombradas noites de Xavier, como nos nossos próprios pesadelos.
Martha, que sempre teve um texto correto e técnico, ganhou uma consistência inédita neste romance devido a ter situado a história em um ambiente familiar às suas experiências pessoais. É inclusive pertinente supor que algumas das situações descritas sejam autobiográficas.
O volume flerta com o mercado paradidático ao inserir, depois da história, artigos instrutivos sobre a Mata Atlântica, a região do Alto Ribeira e seus animais, com atenção especial para os morcegos, é claro.
Também cabe aqui ressaltar o belo trabalho de direção de arte, com uma imagem fabulosa na capa assinada pelo respeitado designer Billy Argel, irmão da aurora, além de um acabamento gráfico perfeito, que é padrão nas edições da Idea.
quarta-feira, 29 de março de 2023
Resenha do Almanaque: Trilhas do tempo, Jorge Luiz Calife
Trilhas do tempo, Jorge Luiz Calife. 176 páginas. Capa de Vagner Vargas. São Paulo: Devir Livraria, 2012. Coleção Pulsar.
Jorge Luiz Calife é um patrimônio da ficção científica brasileira. O nome do autor já se tornou marca de qualidade e sua literatura está entre as mais republicadas do gênero. Foi um dos autores brasileiros mais editados na Devir, com uma linha quase que exclusiva para seus romances, entre os quais estão a Trilogia padrões de contato (2009), reunindo os romances Padrões de contato, Horizonte de eventos e Linha terminal, mais a “prequência” Angela entre dois mundos (2011) e, publicado no finalzinho de 2012, a coletânea Trilhas do tempo, a segunda do autor. A primeira foi As sereias do espaço, publicada em 2001 pela editora Record.
Trilhas do tempo reúne textos que Calife escreveu para diversas revistas ao longo dos anos 1990, principalmente as masculinas EleEla e Playboy, o que a princípio pressupõe um livro com forte pendão erótico. Contudo, também aparecem textos vistos nas revistas Isaac Asimov Magazine e SciFi News Contos, ambas especializada em fc, e até uma novela inédita exclusiva da edição.
Ao todo são sete ficções, mais um posfácio e um levantamento cronológico para a série Padrões de contato, também escritos por Calife. A seleta é apresentada por Clinton Davisson, autor do romance Hegemonia: O herdeiro de Basten, que confessa ser fã de Calife e o cobre de elogios, como não poderia deixar de ser. Embora não o sejam necessariamente, todos os textos parecem inseridos no universo de Padrões de contato, pois dele guardam as mesmas característica e textura geral.
Abre a coletânea o conto “O primeiro voo para as estrelas”, originalmente publicado na revista EleEla em 1987. Conta a história da primeira viagem a um planeta distante, realizado por uma grande tripulação a bordo uma espaçonave convencional. A viagem é feita em velocidades relativísticas e, quando finalmente chega ao seu destino, encontra o lugar habitado por homens que chegaram lá muito antes deles.
“Trajetória de fuga”, publicado nem 1984 na mesma revista, conta a história de uma jovem e promissora atriz de cinema que, por causa de um defeito numa espécie de simulador de realidade virtual, tem sua alma absorvida por uma espaçonave e, dessa forma, avança imortalizada rumo ao infinito.
“A sereia do espaço”, primeiro publicado em 1992 na extinta Isaac Asimov Magazine, conta a aventura de uma jovem astronauta que, em missão burocrática nas luas de Netuno, tem um inesperado contato imediato com uma entidade alienígena que a modifica definitivamente. Tornada em uma trans-humana imortal, ela volta à Terra para resgatar seu amante e levá-lo em sua companhia para viajar eternamente pelas estrelas.
A história se repete em “A espada de Herschel”, noveleta assumidamente inserida na série Padrões de contato, releitura para o clássico 2001: Uma odisseia no espaço, de Arthur C. Clarke. Conta a aventura de uma adolescente em missão às luas de Saturno a bordo de uma espaçonave movida por bombas atômicas. Chegando lá, a garota, e somente ela, entra em um portal que a leva para mil anos no futuro, de onde volta em seguida para alertar a humanidade contra uma grande catástrofe cósmica que se aproxima. A primeira publicação desta novela aconteceu em 2001 na também extinta SciFi News Contos.
O conto seguinte é “Viagem ao interior do Halley”, que a Playboy publicou em 1985, explorando o interesse pela passagem do famoso cometa. Este é único conto pessimista de toda a antologia e provavelmente de toda a carreira do autor. Conta o destino de uma malfadada missão de salvamento ao Halley, prestes a se fragmentar e desaparecer para sempre. Calife sugere que a tragédia não foi um acidente, mas uma manobra calculada pela inescrupulosa megacorporação Norland (o que mais se aproxima de um vilão na saga de Padrões de contato), tão somente para explorar os recursos minerais do Halley em seu próprio benefício.
“A estrela e o golfinho” é uma noveleta inédita, também inserida na cronologia de Padrões de contato. Enquanto Angela Duncan faz sucesso intergaláctico como cantora de um conjunto musical, a Terra está sendo visitada por uma entidade alienígena que parece manipular a radiação solar. Este texto contrasta asperamente com o anterior, porque Calife parece ter se arrependido ao vilanizar a Norland. Num diálogo final, uma executiva da empresa, que nesta história já não é mais uma simples iniciativa privada, mas o governo central da humanidade, faz um discurso positivista que não soa muito bem.
O último conto do livro é “A derradeira paixão”, uma história quase mística, se é que podemos usar esse termo para descrever um texto de Calife. Publicada em 1984 na EleEla, conta também sobre uma tragédia, esta fortuita, causada pela incapacidade humana de entender completamente o universo – um conceito também pouco comum na ficção do autor. A bordo de uma nave capturada por um buraco negro, um casal de jovens amantes tem sua última relação sexual estendida pela eternidade por conta do efeito relativístico.
Completa o volume o ensaio “Arthur C. Clarke, mulheres nuas e a ficção científica”, no qual Calife contextualiza os textos reunidos na coletânea.
Apesar das tentativas explícitas, os textos de Calife aqui reunidos não são mais eróticos que a ficção científica corrente que lemos em toda parte. As longas e detalhadas descrições das espaçonaves e suas tecnologias, bem como a beleza estonteante dos fenômenos cósmicos frente às recatadas cenas de sexo e nudez feminina, revelam onde está a verdadeira paixão destes textos.
Trilhas do tempo é um tributo de Calife à ciência redentora e à imortalidade que um dia, ele acredita, a tecnologia permitirá de uma forma ou de outra.
Jorge Luiz Calife é um patrimônio da ficção científica brasileira. O nome do autor já se tornou marca de qualidade e sua literatura está entre as mais republicadas do gênero. Foi um dos autores brasileiros mais editados na Devir, com uma linha quase que exclusiva para seus romances, entre os quais estão a Trilogia padrões de contato (2009), reunindo os romances Padrões de contato, Horizonte de eventos e Linha terminal, mais a “prequência” Angela entre dois mundos (2011) e, publicado no finalzinho de 2012, a coletânea Trilhas do tempo, a segunda do autor. A primeira foi As sereias do espaço, publicada em 2001 pela editora Record.
Trilhas do tempo reúne textos que Calife escreveu para diversas revistas ao longo dos anos 1990, principalmente as masculinas EleEla e Playboy, o que a princípio pressupõe um livro com forte pendão erótico. Contudo, também aparecem textos vistos nas revistas Isaac Asimov Magazine e SciFi News Contos, ambas especializada em fc, e até uma novela inédita exclusiva da edição.
Ao todo são sete ficções, mais um posfácio e um levantamento cronológico para a série Padrões de contato, também escritos por Calife. A seleta é apresentada por Clinton Davisson, autor do romance Hegemonia: O herdeiro de Basten, que confessa ser fã de Calife e o cobre de elogios, como não poderia deixar de ser. Embora não o sejam necessariamente, todos os textos parecem inseridos no universo de Padrões de contato, pois dele guardam as mesmas característica e textura geral.
Abre a coletânea o conto “O primeiro voo para as estrelas”, originalmente publicado na revista EleEla em 1987. Conta a história da primeira viagem a um planeta distante, realizado por uma grande tripulação a bordo uma espaçonave convencional. A viagem é feita em velocidades relativísticas e, quando finalmente chega ao seu destino, encontra o lugar habitado por homens que chegaram lá muito antes deles.
“Trajetória de fuga”, publicado nem 1984 na mesma revista, conta a história de uma jovem e promissora atriz de cinema que, por causa de um defeito numa espécie de simulador de realidade virtual, tem sua alma absorvida por uma espaçonave e, dessa forma, avança imortalizada rumo ao infinito.
“A sereia do espaço”, primeiro publicado em 1992 na extinta Isaac Asimov Magazine, conta a aventura de uma jovem astronauta que, em missão burocrática nas luas de Netuno, tem um inesperado contato imediato com uma entidade alienígena que a modifica definitivamente. Tornada em uma trans-humana imortal, ela volta à Terra para resgatar seu amante e levá-lo em sua companhia para viajar eternamente pelas estrelas.
A história se repete em “A espada de Herschel”, noveleta assumidamente inserida na série Padrões de contato, releitura para o clássico 2001: Uma odisseia no espaço, de Arthur C. Clarke. Conta a aventura de uma adolescente em missão às luas de Saturno a bordo de uma espaçonave movida por bombas atômicas. Chegando lá, a garota, e somente ela, entra em um portal que a leva para mil anos no futuro, de onde volta em seguida para alertar a humanidade contra uma grande catástrofe cósmica que se aproxima. A primeira publicação desta novela aconteceu em 2001 na também extinta SciFi News Contos.
O conto seguinte é “Viagem ao interior do Halley”, que a Playboy publicou em 1985, explorando o interesse pela passagem do famoso cometa. Este é único conto pessimista de toda a antologia e provavelmente de toda a carreira do autor. Conta o destino de uma malfadada missão de salvamento ao Halley, prestes a se fragmentar e desaparecer para sempre. Calife sugere que a tragédia não foi um acidente, mas uma manobra calculada pela inescrupulosa megacorporação Norland (o que mais se aproxima de um vilão na saga de Padrões de contato), tão somente para explorar os recursos minerais do Halley em seu próprio benefício.
“A estrela e o golfinho” é uma noveleta inédita, também inserida na cronologia de Padrões de contato. Enquanto Angela Duncan faz sucesso intergaláctico como cantora de um conjunto musical, a Terra está sendo visitada por uma entidade alienígena que parece manipular a radiação solar. Este texto contrasta asperamente com o anterior, porque Calife parece ter se arrependido ao vilanizar a Norland. Num diálogo final, uma executiva da empresa, que nesta história já não é mais uma simples iniciativa privada, mas o governo central da humanidade, faz um discurso positivista que não soa muito bem.
O último conto do livro é “A derradeira paixão”, uma história quase mística, se é que podemos usar esse termo para descrever um texto de Calife. Publicada em 1984 na EleEla, conta também sobre uma tragédia, esta fortuita, causada pela incapacidade humana de entender completamente o universo – um conceito também pouco comum na ficção do autor. A bordo de uma nave capturada por um buraco negro, um casal de jovens amantes tem sua última relação sexual estendida pela eternidade por conta do efeito relativístico.
Completa o volume o ensaio “Arthur C. Clarke, mulheres nuas e a ficção científica”, no qual Calife contextualiza os textos reunidos na coletânea.
Apesar das tentativas explícitas, os textos de Calife aqui reunidos não são mais eróticos que a ficção científica corrente que lemos em toda parte. As longas e detalhadas descrições das espaçonaves e suas tecnologias, bem como a beleza estonteante dos fenômenos cósmicos frente às recatadas cenas de sexo e nudez feminina, revelam onde está a verdadeira paixão destes textos.
Trilhas do tempo é um tributo de Calife à ciência redentora e à imortalidade que um dia, ele acredita, a tecnologia permitirá de uma forma ou de outra.
terça-feira, 28 de março de 2023
Mais Múltiplos
Estão disponíveis as edições de número 76, 77 e 78 do fanzine de quadrinhos Múltiplo, editado por André Carim, referentes aos meses de fevereiro a abril de 2023.
As ediçõs têm, respectivamente, 100, 84 e 64 páginas repletas de quadrinhos de ação, aventura e super-heróis de autoria de Luiz Iório, Haroldo Magno, Júlio Shimamoto, Hugo Maximo, Glauco Torres Grayn, Oscar Suyama e Max Piaga. As colunas "Vi, li e gostei...", de Adalberto Bernardino, e "Múltiplos projetos hqs br", do editor, sustentam o conteúdo informativo em todas estas edições do Múltiplo, que podem ser baixadas gratuitamente aqui. Edições anteriores também estão disponíveis.
As ediçõs têm, respectivamente, 100, 84 e 64 páginas repletas de quadrinhos de ação, aventura e super-heróis de autoria de Luiz Iório, Haroldo Magno, Júlio Shimamoto, Hugo Maximo, Glauco Torres Grayn, Oscar Suyama e Max Piaga. As colunas "Vi, li e gostei...", de Adalberto Bernardino, e "Múltiplos projetos hqs br", do editor, sustentam o conteúdo informativo em todas estas edições do Múltiplo, que podem ser baixadas gratuitamente aqui. Edições anteriores também estão disponíveis.
Juvenatrix 245
Está disponível a edição de abril do fanzine eletrônico de horror e ficção científica Juvenatrix, editado por Renato Rosatti. Em dez páginas, traz resenhas, todas de autoria do editor, aos filmes Frankenstein contra o monstro espacial (1965), O monstro do inferno (1968), I was a teenage werewolf (1957), Um cientista distraído (1942) e A noiva do monstro (1965), cujo cartaz original de divulgação ilustra a capa.
Cópias em formato pdf podem ser obtidas pelo email renatorosatti@yahoo.com.br.
segunda-feira, 27 de março de 2023
Resenha do Almanaque: A sombra dos homens, Roberto de Sousa Causo
A saga de Tajarê, Livro 1: A sombra dos homens, Roberto de Sousa Causo. Introdução de Bráulio Tavares. 120 páginas. São Paulo: Devir, 2004.
Romance de aventura mitológica e especulativa de Roberto de Sousa Causo, escritor nascido em São Bernardo do Campo que desde muito jovem optou pelos temas fantásticos, principalmente a ficção científica. São seus livros a antologia A dança das sombras (Caminho Editorial, Lisboa, 1999), o romance Terra verde (editora Cone Sul, São Paulo, 2000) e o ensaio Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875-1950 (editora UFMG, Belo Horizonte, 2003).
A sombra dos homens reúne dois contos já vistos na revista Dragão Brasil (ed. Trama) mais uma noveleta inédita, resultando num dos poucos exemplos autênticos de fix-up na literatura fantástica brasileira, uma vez que não é comum no Brasil a publicação avulsa de contos em revistas (fix-up é um romance que resulta da compilação de contos originalmente independentes que, justapostos, formam uma trama única e coerente).
Tajarê, o protagonista da história, é um indígena sul americano que vive numa época pré-cabralina. Dotado de poderes espirituais e mágicos, Tajarê é usualmente convocado pelas forças da natureza para dar cabo de qualquer ameaça à integridade da mesma, as quais sempre atende embora não aprecie o uso da força que tem de lançar mão para cumprir a tarefa, principalmente quando por conta disso possam acontecer mortes. Portanto Tajarê é um herói infeliz na sua condição de protetor.
A história do primeiro conto, que dá nome ao livro, inicia-se quando Tajarê é convocado a defender sua terra de invasores perigosos vindos de outro continente. Ele é conduzido pelos seres mágicos até uma praia, onde vê desembarcar um grupo pequeno de guerreiros vikings. Eles protegem Sjala, sacerdotisa que pretende localizar e libertar o deus Loki que está aprisionado em algum lugar na Amazônia. Fazendo uso de seus atributos físicos surpreendentes, Tajarê derrota todos os guerreiros vikings e captura a sacerdotisa, pela qual se apaixona.
O segundo conto é o mais curto do livro. "A benção das águas" é a narrativa de um monólogo interior de Sjala. Algum tempo adiante e ainda cativa, ela vive com Tajarê em sua aldeia e dele espera um filho. Apesar de ser prisioneira e sentir um amor paradoxal por seu captor, a sacerdotisa espera a oportunidade ideal para escapar e cumprir a missão que a trouxe para tão longe de sua terra.
A noveleta a seguir é divida em duas partes. A primeira, chamada "Sangue no Grande Rio", mostra exatamente o momento em que a oportunidade da fuga se apresenta a Sjala, anos mais tarde. Niadorã, o filho de Sjala e Tajarê, já é um curumim crescido. Ao pressentir o ataque de uma onça ao seu filho, Sjala usa seus poderes para salvá-lo, irritando a tribo que já não via com muito gosto a presença da cativa branca entre eles. A decisão do chefe tribal, aproveitando a presença de uma comitiva comercial de guerreiras brancas — as ferozes icamiabas — é o banimento de Sjala, que é entregue às amazonas.
Tajarê, que não estava na aldeia, retorna quando o fato já está consumado. Tomado de angústia, parte imediatamente em busca da mãe de seu filho. Depois de uma perseguição exaustiva muitos quilômetros rio acima e com a ajuda de algumas entidades mágicas da natureza, Tajarê ataca o barco das icamiabas que leva Sjala, mas as guerreiras reagem fazendo uso de atributos mágicos, ferindo o guerreiro gravemente. Ainda assim, Tajarê insiste na batalha mas, no momento em que imaginava ter conseguido resgatar Sjala, ela se transforma numa garça e literalmente foge de seus braços, voando em direção da aldeia fortificada das icamiabas, a montante do grande rio. Tajarê não sabe que, apesar de todo o seu amor por ele e Niadorã, Sjala agora está decidida a cumprir sua missão original: libertar Loki e promover o Ragnarok.
A segunda parte da noveleta, chamada "Olhos de fogo", arremata o volume em grande estilo, não deixando nada a dever aos grandes momentos de ação dos grandes livros estrangeiros de fantasia. Sjala, ainda transformada em garça, chega a aldeia das icamiabas, uma cidadela fortificada construída sobre o rio. É recebida pelas guerreiras com um misto de desconfiança e fascinação. As amazonas, que dizem ser descendentes dos atlantes, dominam uma série de instrumentos de tecnologia desconhecida, trunfos contra os muitos inimigos que têm. Mas agora cobiçam o talento de se transformar em ave demonstrado por Sjala que, por isso, é aprisionada até que se recupere o bastante para ensinar-lhes o encanto. Mesmo contida pela magia da cidadela, Sjala elabora um novo plano de fuga, convocando mentalmente para ajudá-la o monstro do mar Kraken. Enquanto as icamiabas esperam que a sacerdotisa viking se recupere, Tajarê planeja o ataque definitivo à cidadela. Para isso, usa todos o expediente de magia que tem a sua disposição, arregimentando um grande número de entidades da natureza, entre elas o poderoso Mboitatá, uma gigantesca cobra que lança fogo pelos olhos. Mas nada lhe será dado sem um preço, e Tajarê sabe que pode não sobreviver a esse custo. Mas seu amor a Sjala e a Niadorã fala mais alto; com o coração apertado pelas mortes que irá causar, Tajarê aceita seu destino, seja qual for.
Causo mostra competência na construção deste enredo, que é dramático sem ser piegas e violento sem ser gratuito. Explora com competência uma mancheia de lendas e mitologias indígenas, dando ao livro um sabor brasilianista poucas vezes visto na fc&f. O excesso de ufanismo que isso poderia sugerir é compensado com referências à mitologia nórdica que, felizmente, não sobressaem. A forma como o autor aproveitou uma variedade de animais nativos da Amazônia, incorporando-lhes atributos mitológicos, é uma das melhores qualidades da obra. Não é definitiva, mas dá um bom exemplo aos demais autores brasileiros das ricas possibilidades por explorar.
Entretanto, apesar do que a apresentação gráfica do volume sugere, com a ilustração de capa assinada por Lourenço Mutarelli, ilustrações e vinhetas gráficas do próprio autor ao longo de todas as páginas internas, e a própria narrativa de fantasia heróica, A sombra dos homens não é um livro infantojuvenil. O texto não apresenta leitura fácil, com a fluidez adequada para crianças e jovens, pois Causo elaborou uma estrutura linguística criativa para modular a identidade dos diversos personagens e culturas, usando palavras incomuns e construções gramaticais exóticas em maior ou menor grau conforme a "indianização" dos mesmos. Resultou, mas esse instrumento exige uma concentração de leitura que pode dificultar a aceitação do texto por leitores pouco tolerantes. A complicada gramática criada pelo autor não é muito elegante, além de ser contraditória em si. Uma língua que não gerou a ideia de uma primeira pessoa do singular não iria permitir insigts de individualidade por parte de seus interlocutores.
Um problema adicional que pode incomodar o leitor exigente é a falta de profundidade do protagonista. Uma vez que Tajarê segue o arquétipo do herói, isso já lhe dá dificuldades para ser "redondo", pois um arquétipo que ganha profundidade deixa imediatamente de ser um arquétipo. Mas o mais visível é que, apesar de ser obviamente um indígena, Tajarê não apresenta nacionalidade específica. É um "índio genérico", que tanto poderia ser Tupi-Guarani, Tapajó, Xavante ou Caiapó. É de esperar que, aos olhos dos homens brancos, os indígenas pareçam todos iguais, mas eles não são. Elaborar um indígena brasileiro autêntico é tão difícil quanto um viking, talvez mais. Isso não implicaria em conspurcar o arquétipo do protagonista, pois os traços culturais indígenas mais visíveis estão na arquitetura das moradias, na religião, na língua, nos costumes sociais e alimentares, etc. Causo deu pouca atenção a isso, infelizmente, passando muito rápido pelas descrições que poderiam colaborar no estabelecimento dessa identidade, dando ainda ao trabalho alguma profundidade antropológica. Esse descuido não atrapalha a narrativa, mas enfraquece o valor da obra, que poderia ter sido muito enriquecida por uma pesquisa mais profunda.
Ainda assim, superada a dificuldade inicial com a gramática heterodoxa, A sombra dos homens é um trabalho que se lê com prazer e que se reveste de dimensão significativa no panorama da fc&f brasileira; um trabalho que deve ser lido e discutido por suas muitas contribuições e sugestões ao gênero.
Ainda vale ressaltar a introdução luxuosa que o jornalista, compositor e escritor Braulio Tavares cedeu ao volume, um ensaio sobre o mito do herói, o herói realista, o herói brasileiro e o aproveitamento que Roberto Causo faz disso no texto que se segue.
Romance de aventura mitológica e especulativa de Roberto de Sousa Causo, escritor nascido em São Bernardo do Campo que desde muito jovem optou pelos temas fantásticos, principalmente a ficção científica. São seus livros a antologia A dança das sombras (Caminho Editorial, Lisboa, 1999), o romance Terra verde (editora Cone Sul, São Paulo, 2000) e o ensaio Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875-1950 (editora UFMG, Belo Horizonte, 2003).
A sombra dos homens reúne dois contos já vistos na revista Dragão Brasil (ed. Trama) mais uma noveleta inédita, resultando num dos poucos exemplos autênticos de fix-up na literatura fantástica brasileira, uma vez que não é comum no Brasil a publicação avulsa de contos em revistas (fix-up é um romance que resulta da compilação de contos originalmente independentes que, justapostos, formam uma trama única e coerente).
Tajarê, o protagonista da história, é um indígena sul americano que vive numa época pré-cabralina. Dotado de poderes espirituais e mágicos, Tajarê é usualmente convocado pelas forças da natureza para dar cabo de qualquer ameaça à integridade da mesma, as quais sempre atende embora não aprecie o uso da força que tem de lançar mão para cumprir a tarefa, principalmente quando por conta disso possam acontecer mortes. Portanto Tajarê é um herói infeliz na sua condição de protetor.
A história do primeiro conto, que dá nome ao livro, inicia-se quando Tajarê é convocado a defender sua terra de invasores perigosos vindos de outro continente. Ele é conduzido pelos seres mágicos até uma praia, onde vê desembarcar um grupo pequeno de guerreiros vikings. Eles protegem Sjala, sacerdotisa que pretende localizar e libertar o deus Loki que está aprisionado em algum lugar na Amazônia. Fazendo uso de seus atributos físicos surpreendentes, Tajarê derrota todos os guerreiros vikings e captura a sacerdotisa, pela qual se apaixona.
O segundo conto é o mais curto do livro. "A benção das águas" é a narrativa de um monólogo interior de Sjala. Algum tempo adiante e ainda cativa, ela vive com Tajarê em sua aldeia e dele espera um filho. Apesar de ser prisioneira e sentir um amor paradoxal por seu captor, a sacerdotisa espera a oportunidade ideal para escapar e cumprir a missão que a trouxe para tão longe de sua terra.
A noveleta a seguir é divida em duas partes. A primeira, chamada "Sangue no Grande Rio", mostra exatamente o momento em que a oportunidade da fuga se apresenta a Sjala, anos mais tarde. Niadorã, o filho de Sjala e Tajarê, já é um curumim crescido. Ao pressentir o ataque de uma onça ao seu filho, Sjala usa seus poderes para salvá-lo, irritando a tribo que já não via com muito gosto a presença da cativa branca entre eles. A decisão do chefe tribal, aproveitando a presença de uma comitiva comercial de guerreiras brancas — as ferozes icamiabas — é o banimento de Sjala, que é entregue às amazonas.
Tajarê, que não estava na aldeia, retorna quando o fato já está consumado. Tomado de angústia, parte imediatamente em busca da mãe de seu filho. Depois de uma perseguição exaustiva muitos quilômetros rio acima e com a ajuda de algumas entidades mágicas da natureza, Tajarê ataca o barco das icamiabas que leva Sjala, mas as guerreiras reagem fazendo uso de atributos mágicos, ferindo o guerreiro gravemente. Ainda assim, Tajarê insiste na batalha mas, no momento em que imaginava ter conseguido resgatar Sjala, ela se transforma numa garça e literalmente foge de seus braços, voando em direção da aldeia fortificada das icamiabas, a montante do grande rio. Tajarê não sabe que, apesar de todo o seu amor por ele e Niadorã, Sjala agora está decidida a cumprir sua missão original: libertar Loki e promover o Ragnarok.
A segunda parte da noveleta, chamada "Olhos de fogo", arremata o volume em grande estilo, não deixando nada a dever aos grandes momentos de ação dos grandes livros estrangeiros de fantasia. Sjala, ainda transformada em garça, chega a aldeia das icamiabas, uma cidadela fortificada construída sobre o rio. É recebida pelas guerreiras com um misto de desconfiança e fascinação. As amazonas, que dizem ser descendentes dos atlantes, dominam uma série de instrumentos de tecnologia desconhecida, trunfos contra os muitos inimigos que têm. Mas agora cobiçam o talento de se transformar em ave demonstrado por Sjala que, por isso, é aprisionada até que se recupere o bastante para ensinar-lhes o encanto. Mesmo contida pela magia da cidadela, Sjala elabora um novo plano de fuga, convocando mentalmente para ajudá-la o monstro do mar Kraken. Enquanto as icamiabas esperam que a sacerdotisa viking se recupere, Tajarê planeja o ataque definitivo à cidadela. Para isso, usa todos o expediente de magia que tem a sua disposição, arregimentando um grande número de entidades da natureza, entre elas o poderoso Mboitatá, uma gigantesca cobra que lança fogo pelos olhos. Mas nada lhe será dado sem um preço, e Tajarê sabe que pode não sobreviver a esse custo. Mas seu amor a Sjala e a Niadorã fala mais alto; com o coração apertado pelas mortes que irá causar, Tajarê aceita seu destino, seja qual for.
Causo mostra competência na construção deste enredo, que é dramático sem ser piegas e violento sem ser gratuito. Explora com competência uma mancheia de lendas e mitologias indígenas, dando ao livro um sabor brasilianista poucas vezes visto na fc&f. O excesso de ufanismo que isso poderia sugerir é compensado com referências à mitologia nórdica que, felizmente, não sobressaem. A forma como o autor aproveitou uma variedade de animais nativos da Amazônia, incorporando-lhes atributos mitológicos, é uma das melhores qualidades da obra. Não é definitiva, mas dá um bom exemplo aos demais autores brasileiros das ricas possibilidades por explorar.
Entretanto, apesar do que a apresentação gráfica do volume sugere, com a ilustração de capa assinada por Lourenço Mutarelli, ilustrações e vinhetas gráficas do próprio autor ao longo de todas as páginas internas, e a própria narrativa de fantasia heróica, A sombra dos homens não é um livro infantojuvenil. O texto não apresenta leitura fácil, com a fluidez adequada para crianças e jovens, pois Causo elaborou uma estrutura linguística criativa para modular a identidade dos diversos personagens e culturas, usando palavras incomuns e construções gramaticais exóticas em maior ou menor grau conforme a "indianização" dos mesmos. Resultou, mas esse instrumento exige uma concentração de leitura que pode dificultar a aceitação do texto por leitores pouco tolerantes. A complicada gramática criada pelo autor não é muito elegante, além de ser contraditória em si. Uma língua que não gerou a ideia de uma primeira pessoa do singular não iria permitir insigts de individualidade por parte de seus interlocutores.
Um problema adicional que pode incomodar o leitor exigente é a falta de profundidade do protagonista. Uma vez que Tajarê segue o arquétipo do herói, isso já lhe dá dificuldades para ser "redondo", pois um arquétipo que ganha profundidade deixa imediatamente de ser um arquétipo. Mas o mais visível é que, apesar de ser obviamente um indígena, Tajarê não apresenta nacionalidade específica. É um "índio genérico", que tanto poderia ser Tupi-Guarani, Tapajó, Xavante ou Caiapó. É de esperar que, aos olhos dos homens brancos, os indígenas pareçam todos iguais, mas eles não são. Elaborar um indígena brasileiro autêntico é tão difícil quanto um viking, talvez mais. Isso não implicaria em conspurcar o arquétipo do protagonista, pois os traços culturais indígenas mais visíveis estão na arquitetura das moradias, na religião, na língua, nos costumes sociais e alimentares, etc. Causo deu pouca atenção a isso, infelizmente, passando muito rápido pelas descrições que poderiam colaborar no estabelecimento dessa identidade, dando ainda ao trabalho alguma profundidade antropológica. Esse descuido não atrapalha a narrativa, mas enfraquece o valor da obra, que poderia ter sido muito enriquecida por uma pesquisa mais profunda.
Ainda assim, superada a dificuldade inicial com a gramática heterodoxa, A sombra dos homens é um trabalho que se lê com prazer e que se reveste de dimensão significativa no panorama da fc&f brasileira; um trabalho que deve ser lido e discutido por suas muitas contribuições e sugestões ao gênero.
Ainda vale ressaltar a introdução luxuosa que o jornalista, compositor e escritor Braulio Tavares cedeu ao volume, um ensaio sobre o mito do herói, o herói realista, o herói brasileiro e o aproveitamento que Roberto Causo faz disso no texto que se segue.
domingo, 26 de março de 2023
Lançamento: Sombras do Sol
Chega ao país, pela editora Morro Branco, o novo romance de N. K. Jemisin, escritora americana premiada como Hugo em 2016, 2017 e 2018 pela trilogia A terra partida (fomada pelos romances A quinta estação, O portão do obelisco e O céu de pedra).
Sombras do Sol é o segundo volume da duologia Dreamblood, iniciada com Lua de sangue (publicado pela Morro Branco em 2022), que conta sobre um mundo em que uma estirpe de magos usa de seus poderes para a manter da paz em Gujaareh, a Cidade dos Sonhos.
Diz o texto de divulgação: "Gujaareh, a Cidade dos Sonhos, sofre sob o domínio imperial do Protetorado Kisuati. Uma cidade onde a única lei era a paz agora conhece a violência e a opressão. E pesadelos. Uma praga misteriosa e mortal assombra os cidadãos de Gujaareh, condenando os infectados a morrer gritando enquanto dormem. Preso entre sonhos sombrios e senhores cruéis, o povo anseia por se levantar – mas Gujaareh não conheceu nadaalém da paz por muito tempo. A esperança está com dois párias: a primeira mulher a se juntar ao sacerdócio da Deusa dos Sonhos e um príncipe exilado que deseja recuperar seu direito como primogênito. Juntos, eles devem resistir à ocupação kisuati e descobrir a fonte dos sonhos assassinos… antes que Gujaareh se perca para sempre."
Sombras do Sol tem 512 páginas, tradução de Aline Storto Pereira, e está em pré-venda no saite da editora, aqui.
Sombras do Sol é o segundo volume da duologia Dreamblood, iniciada com Lua de sangue (publicado pela Morro Branco em 2022), que conta sobre um mundo em que uma estirpe de magos usa de seus poderes para a manter da paz em Gujaareh, a Cidade dos Sonhos.
Diz o texto de divulgação: "Gujaareh, a Cidade dos Sonhos, sofre sob o domínio imperial do Protetorado Kisuati. Uma cidade onde a única lei era a paz agora conhece a violência e a opressão. E pesadelos. Uma praga misteriosa e mortal assombra os cidadãos de Gujaareh, condenando os infectados a morrer gritando enquanto dormem. Preso entre sonhos sombrios e senhores cruéis, o povo anseia por se levantar – mas Gujaareh não conheceu nadaalém da paz por muito tempo. A esperança está com dois párias: a primeira mulher a se juntar ao sacerdócio da Deusa dos Sonhos e um príncipe exilado que deseja recuperar seu direito como primogênito. Juntos, eles devem resistir à ocupação kisuati e descobrir a fonte dos sonhos assassinos… antes que Gujaareh se perca para sempre."
Sombras do Sol tem 512 páginas, tradução de Aline Storto Pereira, e está em pré-venda no saite da editora, aqui.
sábado, 25 de março de 2023
Resenha do Almanaque: Quintessência, Flávio Medeiros Jr.
Quintessência, Flávio Medeiros Jr. 232 páginas. Belo Horizonte: Publigraph, 2004. Selo Monções.
Flávio César de Medeiros Júnior, médico oftalmologista natural de Belo Horizonte, não era conhecido no fandom até pouco antes de lançar seu livro de estreia em 2004, o romance de ficção científica Quintessência, pela Publigraph Editorial, através do selo Monções.
O romance é mais propriamente uma ficção policial, embora a fc se apresente de forma importante. O personagem principal é o investigador de polícia Tomas Rizzatti, designado para investigar um crime tão bárbaro quanto misterioso: um atirador não identificado abriu fogo no corredor de um shopping center, assassinando várias pessoas e suicidando-se em seguida com uma bomba incendiária. Rizzatti já havia investigado um crime semelhante alguns anos antes, o que somente contribui para acirrar o mistério: dois crimes muito similares cujos autores morreram sem serem identificados. Porém, Rizzatti é experiente e consegue localizar algumas pistas, como o carro do terrorista, abandonado numa rua próxima ao shopping, um modelo em especial que é moda entre os policiais. Surge então Fernando Grogorovicz, agente da Interpol enviado para acompanhar o caso. Há um clima de competitividade entre os policiais e o seguimento das investigações parece apontar o próprio Rizzatti como mandante do atentado. Aos poucos, Rizzatti se vê cada vez mais enrolado e tem de desaparecer para prosseguir com sua própria investigação, que vai levá-lo a revelações pessoais dramáticas e a um torvelinho de situações violentas na trilha de um super-terrorista internacional.
Medeiros, que se tornou um autor elogiado no fandom, já demonstrava aqui um bom domínio da narrativa de ação. Não faltam perseguições de automóveis, correrias no metrô, tiroteios em hotéis de luxo e tudo o que estamos habituados a esperar de um policial movimentado.
Mas e a fc, onde entra nisso?
Para começar, a história passa-se em algum momento na segunda metade do século 21, portanto, a tecnologia está mais sofisticada e o ambiente sócio-político é ligeiramente diverso do atual: o degelo polar causou a inundação das grandes cidades litorâneas de todo o mundo e Belo Horizonte, onde se passa a história, foi uma das grandes cidades brasileiras que conseguiu manter-se a salvo das misérias futuristas. Mas este cenário é apenas circunstancial e a mesma história poderia ser perfeitamente instalada no presente, num tecnotriller sem necessidades extrapolativas. O que legitima o romance como fc é a especulação sobre a genética, uma área de pesquisa científica de ponta no Brasil, que nunca interessou muito aos autores brasileiros de fc, exceção feita ao romance O sorriso do lagarto, de João Ubaldo Ribeiro. Entretanto, os parentescos mais próximos de Quintessência são mesmo os filmes de cinema de ação e espionagem e as histórias em quadrinhos de aventura.
O que livra Quintessência do pastiche é a habilidade do autor em construir um cenário brasileiro futurista plausível. Medeiros usou e abusou de referências geográficas reais, incluindo ruas e logradouros de sua cidade, que podem ser identificados pelos leitores que a conhecem. É possível que essa qualidade especial do autor advenha justamente do fato dele não ter sido catequizado pela filosofia de uma fc&f "sem referências bairristas" abraçada por boa parte dos autores do fandom.
Quintessência é recomendável para quem gosta de histórias com muita ação e será apreciado também pelos fãs de fc que irão identificar no modelo alguma similaridade com a narrativa de vários autores da Golden Age, que apreciavam fazer fc a partir de tramas policiais. E a ficção policial tem, no Brasil, rejeição muito menor do mainstream. É um bom caminho para ser seguido.
Flávio César de Medeiros Júnior, médico oftalmologista natural de Belo Horizonte, não era conhecido no fandom até pouco antes de lançar seu livro de estreia em 2004, o romance de ficção científica Quintessência, pela Publigraph Editorial, através do selo Monções.
O romance é mais propriamente uma ficção policial, embora a fc se apresente de forma importante. O personagem principal é o investigador de polícia Tomas Rizzatti, designado para investigar um crime tão bárbaro quanto misterioso: um atirador não identificado abriu fogo no corredor de um shopping center, assassinando várias pessoas e suicidando-se em seguida com uma bomba incendiária. Rizzatti já havia investigado um crime semelhante alguns anos antes, o que somente contribui para acirrar o mistério: dois crimes muito similares cujos autores morreram sem serem identificados. Porém, Rizzatti é experiente e consegue localizar algumas pistas, como o carro do terrorista, abandonado numa rua próxima ao shopping, um modelo em especial que é moda entre os policiais. Surge então Fernando Grogorovicz, agente da Interpol enviado para acompanhar o caso. Há um clima de competitividade entre os policiais e o seguimento das investigações parece apontar o próprio Rizzatti como mandante do atentado. Aos poucos, Rizzatti se vê cada vez mais enrolado e tem de desaparecer para prosseguir com sua própria investigação, que vai levá-lo a revelações pessoais dramáticas e a um torvelinho de situações violentas na trilha de um super-terrorista internacional.
Medeiros, que se tornou um autor elogiado no fandom, já demonstrava aqui um bom domínio da narrativa de ação. Não faltam perseguições de automóveis, correrias no metrô, tiroteios em hotéis de luxo e tudo o que estamos habituados a esperar de um policial movimentado.
Mas e a fc, onde entra nisso?
Para começar, a história passa-se em algum momento na segunda metade do século 21, portanto, a tecnologia está mais sofisticada e o ambiente sócio-político é ligeiramente diverso do atual: o degelo polar causou a inundação das grandes cidades litorâneas de todo o mundo e Belo Horizonte, onde se passa a história, foi uma das grandes cidades brasileiras que conseguiu manter-se a salvo das misérias futuristas. Mas este cenário é apenas circunstancial e a mesma história poderia ser perfeitamente instalada no presente, num tecnotriller sem necessidades extrapolativas. O que legitima o romance como fc é a especulação sobre a genética, uma área de pesquisa científica de ponta no Brasil, que nunca interessou muito aos autores brasileiros de fc, exceção feita ao romance O sorriso do lagarto, de João Ubaldo Ribeiro. Entretanto, os parentescos mais próximos de Quintessência são mesmo os filmes de cinema de ação e espionagem e as histórias em quadrinhos de aventura.
O que livra Quintessência do pastiche é a habilidade do autor em construir um cenário brasileiro futurista plausível. Medeiros usou e abusou de referências geográficas reais, incluindo ruas e logradouros de sua cidade, que podem ser identificados pelos leitores que a conhecem. É possível que essa qualidade especial do autor advenha justamente do fato dele não ter sido catequizado pela filosofia de uma fc&f "sem referências bairristas" abraçada por boa parte dos autores do fandom.
Quintessência é recomendável para quem gosta de histórias com muita ação e será apreciado também pelos fãs de fc que irão identificar no modelo alguma similaridade com a narrativa de vários autores da Golden Age, que apreciavam fazer fc a partir de tramas policiais. E a ficção policial tem, no Brasil, rejeição muito menor do mainstream. É um bom caminho para ser seguido.
sexta-feira, 24 de março de 2023
Lançamento: Pense em Phlebas
Um dos mais importantes livros de ficção científica internacional que continuava inédito no Brasil, cuja edição portuguesa, publicada em 1991 pela editora Clássica, era vendida a peso de ouro nos sebos brasileiros, finalmente ganha edição pela Morro Branco, com tradução de Edmundo Barreiros.
Trata-se de Pense em Phlebas, romance originalmente publicado em 1987, de autoria do escritor escocês Iain M. Banks (1954-2013). É o segundo volume publicado no Brasil pertencente à série A Cultura, que estreou com O jogador, publicado pela mesma editora em 2021.
Diz o texto de divulgação: "Um conflito inevitável entre fé e ciência deixa um rastro incalculável de morte e miséria, devorando luas, planetas e as próprias estrelas em sua onda de destruição. De um lado, os idiranos lutam por sua fé. De outro, a Cultura, uma sociedade utópica em que impera a simbiose entre humanos e máquinas, luta pela legitimidade de sua própria existência. Em meio ao conflito cósmico, nas entranhas de um labirinto no Planeta dos Mortos, encontra-se uma Mente, uma sofisticada unidade de inteligência artificial pertencente à Cultura e que pode mudar os rumos do conflito.
Trata-se de Pense em Phlebas, romance originalmente publicado em 1987, de autoria do escritor escocês Iain M. Banks (1954-2013). É o segundo volume publicado no Brasil pertencente à série A Cultura, que estreou com O jogador, publicado pela mesma editora em 2021.
Diz o texto de divulgação: "Um conflito inevitável entre fé e ciência deixa um rastro incalculável de morte e miséria, devorando luas, planetas e as próprias estrelas em sua onda de destruição. De um lado, os idiranos lutam por sua fé. De outro, a Cultura, uma sociedade utópica em que impera a simbiose entre humanos e máquinas, luta pela legitimidade de sua própria existência. Em meio ao conflito cósmico, nas entranhas de um labirinto no Planeta dos Mortos, encontra-se uma Mente, uma sofisticada unidade de inteligência artificial pertencente à Cultura e que pode mudar os rumos do conflito.
Bora Horza Gobuchul, um Transmutador com a habilidade de metamorfosear seu corpo à semelhança de outros indivíduos, e parte de uma equipe improvável de mercenários, são empregados pelos idiranos para recuperá-la. Preso entre as frentes opostas, as linhas entre sua identidade e a das pessoas que ele assume se tornam cada vez mais tênues."
Desconheço o motivo que levou a Morro Branco a optar por não iniciar a série com Pense em Phlebas, uma vez que este é o primeiro volume, sendo O jogador o segundo. Talvez sejam as sempre misteriosas e imprecisas "razões editoriais". Pelo menos agora o leitor pode decidir por onde começar.
A edição brasileira tem 576 páginas e já está disponível nas livrarias, agora a peso de prata. Ainda caro, mas já dá para comprar.
quarta-feira, 22 de março de 2023
Lançamento: Maré de mentiras
Está em pré-venda a versão impressa de Maré de mentiras, primeiro volume da série Mar Interno, nova história de fantasia do escritor e tradutor Roberto Campos Pellanda, pela Editora Avec, no mesmo universo de seu romance anterior, Terceiro saber, publicado em 2022 pela mesma editora.
Diz o texto de divulgação: "Anabela Terrasini vive em Sobrecéu, a mais poderosa das cidades marítimas. A vida previsível que ela leva chega ao fim com a notícia: o pai, o duque de Sobrecéu, está morto. No vazio de poder, em meio a conspirações que transformam velhos aliados em inimigos, Anabela compreende que o perigo que ela — e Sobrecéu — correm é muito real.
Theo, o garoto sem sobrenome, vive sob o mantra: Nunca se envolver e nunca tomar partido. Mas quando a pequena Raíssa, uma menina muda que é a sua companheira de golpes nas ruas de Valporto, é sequestrada, Theo decide tomar para si a missão de resgatá-la. Na jornada, talvez ele encontre mais do que imagina e descubra que é hora de enterrar o passado — e o seu mantra — de uma vez por todas.
Em Tássia, o comandante reformado Asil Arcan vive assombrado pelo conflito perdido vinte anos antes. Para Asil, a conta dos mortos é sua — e apenas sua. Em meio à miséria de uma existência sem sentido, ele passa a ser atormentado por estranhas visões: em um salão em chamas, uma menina pede por socorro. E se o chamado for verdadeiro? E se, junto com ele, houver também a chance de um recomeço?"
A versão em ebook está disponível aqui. A edição impressa, que terá 408 páginas, pode ser reservada aqui.
Diz o texto de divulgação: "Anabela Terrasini vive em Sobrecéu, a mais poderosa das cidades marítimas. A vida previsível que ela leva chega ao fim com a notícia: o pai, o duque de Sobrecéu, está morto. No vazio de poder, em meio a conspirações que transformam velhos aliados em inimigos, Anabela compreende que o perigo que ela — e Sobrecéu — correm é muito real.
Theo, o garoto sem sobrenome, vive sob o mantra: Nunca se envolver e nunca tomar partido. Mas quando a pequena Raíssa, uma menina muda que é a sua companheira de golpes nas ruas de Valporto, é sequestrada, Theo decide tomar para si a missão de resgatá-la. Na jornada, talvez ele encontre mais do que imagina e descubra que é hora de enterrar o passado — e o seu mantra — de uma vez por todas.
Em Tássia, o comandante reformado Asil Arcan vive assombrado pelo conflito perdido vinte anos antes. Para Asil, a conta dos mortos é sua — e apenas sua. Em meio à miséria de uma existência sem sentido, ele passa a ser atormentado por estranhas visões: em um salão em chamas, uma menina pede por socorro. E se o chamado for verdadeiro? E se, junto com ele, houver também a chance de um recomeço?"
A versão em ebook está disponível aqui. A edição impressa, que terá 408 páginas, pode ser reservada aqui.
Rio2C começa bem... mal!
Há semanas que escritores e quadrinhistas brasileiros aguardavam com ansiedade a divulgação da lista de trabalhos selecionados para o "pitching editorial" da Rio2C, congresso que se autodenomina "O maior evento de criatividade da América Latina". Marcado para acontecer nos dias 12 e 13 de abril de 2023, na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro, conta com o patrocínio de empresas de porte como Banco do Brasil, Petrobrás, Enel, Ancine, Globo, OLX e outras marcas públicas e privadas.
O pitching editorial é um tipo de audição na qual os artistas apresentam produções originais, literárias ou de quadrinhos inscritas nas categorias "Ficção" e "Jovem Adulto", para uma banca de examinadores que apreciarão as possibilidades de transformá-las em produtos audiovisuais e/ou editoriais. O edital do certame – que não está mais disponível no site do evento – determinava que apenas obras inéditas deveriam ser inscritas. E foi justamente isso que causou profundo mal estar e revolta entre os candidatos rejeitados, pois quase a metade dos dezenove trabalhos anunciados aqui estão longe de serem inéditos, tanto que uma busca rápida pode encontrá-los facilmente à venda pela internet. Por exemplo:
Camille & Camila, Bella Prudêncio (FlyveQVoe (2021)
Tempos de liberdade, Chiara Ciodarot (UBK, 2022)
Filhos do fim do mundo, Fábio Madrigal Barreto (Fantasy, 2014)
Os últimos mestiços, Maria Eduarda Celestino Vieira (UICLAP, 2022)
Fake, Felipe Barenco (Umo, 2014)
Unay, Carlos Felipe Figueiras (Cafezal, 2022)
Pá de cal, Gustavo Ávila (Amazon, 2022)
Algumas edições são recentes, de 2021 e 2022, mas causa espanto que textos publicados em 2014 apareçam na lista. Filhos do fim do mundo, de Fabio Madrigal Barreto, chegou até a ganhar o prêmio Argos do Clube de Leitores de Ficção Científica, quando de sua publicação. E teve até uma adaptação audiovisual, ainda disponível aqui.
Como minha pesquisa foi ligeira, pode não ter identificado a publicação prévia de todos os títulos que efetivamente o foram, o que coloca as obras restantes também sob suspeição nesse aspecto.
É uma pena que tal nível de leviandade se apresente num evento que envolve a produção de fc&f brasileira, que já sofre profundamente com o preconceito e a falta de profissionalização. A depender de eventos desse tipo, a situação certamente não melhorará.
O pitching editorial é um tipo de audição na qual os artistas apresentam produções originais, literárias ou de quadrinhos inscritas nas categorias "Ficção" e "Jovem Adulto", para uma banca de examinadores que apreciarão as possibilidades de transformá-las em produtos audiovisuais e/ou editoriais. O edital do certame – que não está mais disponível no site do evento – determinava que apenas obras inéditas deveriam ser inscritas. E foi justamente isso que causou profundo mal estar e revolta entre os candidatos rejeitados, pois quase a metade dos dezenove trabalhos anunciados aqui estão longe de serem inéditos, tanto que uma busca rápida pode encontrá-los facilmente à venda pela internet. Por exemplo:
Camille & Camila, Bella Prudêncio (FlyveQVoe (2021)
Tempos de liberdade, Chiara Ciodarot (UBK, 2022)
Filhos do fim do mundo, Fábio Madrigal Barreto (Fantasy, 2014)
Os últimos mestiços, Maria Eduarda Celestino Vieira (UICLAP, 2022)
Fake, Felipe Barenco (Umo, 2014)
Unay, Carlos Felipe Figueiras (Cafezal, 2022)
Pá de cal, Gustavo Ávila (Amazon, 2022)
Algumas edições são recentes, de 2021 e 2022, mas causa espanto que textos publicados em 2014 apareçam na lista. Filhos do fim do mundo, de Fabio Madrigal Barreto, chegou até a ganhar o prêmio Argos do Clube de Leitores de Ficção Científica, quando de sua publicação. E teve até uma adaptação audiovisual, ainda disponível aqui.
Como minha pesquisa foi ligeira, pode não ter identificado a publicação prévia de todos os títulos que efetivamente o foram, o que coloca as obras restantes também sob suspeição nesse aspecto.
É uma pena que tal nível de leviandade se apresente num evento que envolve a produção de fc&f brasileira, que já sofre profundamente com o preconceito e a falta de profissionalização. A depender de eventos desse tipo, a situação certamente não melhorará.
segunda-feira, 20 de março de 2023
Resenha do Almanaque: A pulp fiction de Guimarães Rosa, Braulio Tavares
A pulp fiction de Guimarães Rosa, Braulio Tavares. 80 páginas. Série Veredas, nº 5. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2008.
Nem todos os fãs de ficção científica e fantasia gostam quando algum estudioso descobre pontes entre o gênero fantástico e o cânone literário, pois isso parece retirar deles parte da autoridade. Afinal, se um figurão “de fora” de repente é inserido no fantástico, todos os argumentos ficam comprometidos até que o mesmo seja lido e estudado. No imaginário do fandom, os gêneros são quase uma propriedade particular, um espaço reservado no qual se pode, por exemplo, impedir que um autor do mainstream trafegue, uma pequena vingança à falácia que o mercado maldosamente bloqueia o acesso dos autores de gênero ao público.
Por outro lado, há fãs que gostam de ver grandes nomes da literatura envolvidos com a ficção de gênero exclusivamente para se sentirem um pouco melhor dentro de um nicho desprestigiado cultural e comercialmente.
Nem uma nem outra foram intenções do escritor pernambucano Braulio Tavares quando se debruçou sobre a obra de Guimarães Rosa em busca de vínculos com a ficção fantástica. Historicamente, Tavares tem dedicado boa parte de seu trabalho de pesquisa a identificar a fisionomia da ficção fantástica brasileira, com objetivos historiográficos, técnicos e estéticos, ou um pouco mais egoístas, qual sejam, descobrir caminhos que ele mesmo, como autor fantástico, pode trilhar. Ao compartilhar com os leitores o resultado de suas análises, ajuda outros autores e o próprio fã a entenderem a ficção fantástica e o que a torna inequivocamente brasileira.
Tavares já presenteou os leitores com diversos livros de ficção e não-ficção, como a coletânea A espinha dorsal da memória/ Mundo Fantasmo (Rocco, 1989), o romance A máquina voadora (Rocco, 1994) e os ensaios O que é ficção científica (Brasiliense, 1986) e Um rasgão no real (Marca de Fantasia, 2005), entre outros. Em A pulp fiction de Guimarães Rosa, seu segundo livro pela prestigiosa editora independente Marca de Fantasia, reuniu ensaios sobre trabalhos curtos de Rosa em três fases distintas, identificando influências, ferramentas narrativas e a forma roseana de pensar a ficção como peça de arte literária inserida na tradição cultural brasileira.
O primeiro ensaio, que traz o nome do volume, foi originalmente publicado no “Caderno de Sábado” do Jornal da Tarde, em 1998. Nele, Tavares trata de alguns contos da fase inicial de Guimarães Rosa, quando ele era ainda jovem. “O mistério de Highmore Hall” foi publicado em 1929 na revista O Cruzeiro, quando Rosa tinha apenas 21 anos. É um conto de contornos góticos, com um mistério de morte e horror num velho castelo escocês. Fica claro que Rosa conhecia – e gostava – dos textos de Edgar Alan Poe e Alexandre Dumas, e seguiu-lhes cuidadosamente os passos. Revela assim que, em seu início, Rosa agia exatamente da mesma forma que os atuais autores-fãs: escrevia pastiches de seus autores favoritos; bem escritos mas, ainda assim, pastiches.
O segundo conto tratado é “Makiné”, publicado em O Jornal, em 1930. Trata-se de uma dark-fantasy que se passa durante a visita dos fenícios às terras dos tupinambás. Ainda que a história lembre as prosas de Clark Ashton Smith e Robert Howard, já mostra que Rosa não estava satisfeito em apenas repetir-lhes, e tratou de inserir um Brasil pré-cabralino, geograficamente reconhecível: Maquiné é uma famosa gruta da região em que Guimarães Rosa nasceu. Desta forma, Rosa repete também o processo de autoconsciência dos autores do fandom brasileiro que, a certa altura, perceberam que era necessário dar feição nacional a ficção que faziam. Ainda que o texto continue a parecer escrito por um estrangeiro, foi um passo enorme em apenas alguns meses de atividade. Os autores-fãs tiveram muito mais dificuldade em dar esse passo.
“Tempo e fatalidade” saiu em O Cruzeiro, em 1930. Conta a história de um enxadrista que vai participar de um torneio no sul da Alemanha e acaba envolvido por um mistério de deuses antigos e estados alterados de consciência. Ainda que não tenha o regionalismo imposto, como visto no exemplo anterior, este conto apontou os caminhos de Rosa no trato com o simbolismo mitológico e a luta do bem contra o mal, que igualmente caracterizam a sua obra. Também já ensaia o zelo na escolha dos nomes dos personagens, que sempre trazem sentidos ocultos. Ou seja, está neste conto o gérmen do que viria a ser a proposta literária roseana e, neste aspecto, os paralelos com a ficção fantástica brasileira só vão ser encontrados nos trabalhos dos autores mais amadurecidos da fc&f brasileira, como por exemplo André Carneiro, Rubens Teixeira Scavone e Dinah Silveira de Queirós que, curiosamente, nunca foram autores-fãs.
O segundo ensaio, inédito, avalia minuciosamente um trabalho um pouco mais longo de Guimarães Rosa, a novela “O recado do morro”, publicada em 1956 na coletânea Corpo de baile. Acompanhar a dissecação que Tavares realiza é um verdadeiro cabo-de-guerra, pois esta novela é fruto de um Guimarães Rosa maduro e pronto.
Quem já leu a ficção roseana sabe que uma das muitas características do autor de Grande sertão veredas é uma prosa repleta de termos desconhecidos e desusados, que remetem à linguagem sertaneja. Ainda que possa soar incômoda a princípio, a musicalidade do texto leva o leitor a vestir o espírito sertanejo, evocando raízes profundas que nem mesmo acreditava ter, tanto que depois de algum tempo, a prosa clareia e ganha uma vitalidade especial, fruto de um cuidado nada casual.
Tavares nos conduz nessa rede intrincada e explica cada detalhe dessa história que repete a saga do herói medieval transposta com maestria ao sertão mineiro. Uma saga de viagem em que um mistificado Morro da Garça, através de um eremita, faz chegar uma profecia ao herói, prediz o futuro e pode salvar-lhe a vida. Não há aqui mais nenhum paralelo possível aos fenômenos criativos dos autores do fandom. Nenhum sequer chegou-lhe aos pés e é uma revelação perceber como uma narrativa fantástica absolutamente regional pode ser tão universal.
Fecha o volume um ensaio em que Tavares realiza, de forma igualmente interessante e detalhada, o entendimento do conto “Um moço muito branco“, originalmente publicado em 1962 na coletânea Outras estórias. Trata-se do trabalho de Rosa mais claramente identificado com a ficção científica, visto que relata a experiência de uma comunidade interiorana que faz contato com um homem tão estranho e poderoso que só lhe resta ser alienígena. É claro que isso não é explícito e, ao final da história, não há um desfecho conclusivo, o que Tavares aproveita para apresentar seu estudo sobre os protocolos de pergunta e resposta, que podem ser observados na ficção de forma geral e na fantástica mais explicitamente.
Em poucas páginas, que se leem rapidamente, Tavares reúne uma quantidade absurda de informações e considerações, cita dezenas de autores nacionais e estrangeiros, de fantasia ou não, com os quais a obra roseana dialoga. Também não decepciona o leitor ao inserir, ilustrando suas análises, trechos brilhantes dos trabalhos avaliados, trazendo a própria obra de Guimarães Rosa aos olhos de leitores que, de outra forma, não se entusiasmariam com a tarefa de ler esse grande autor brasileiro.
O título do volume, como se vê, não é tão adequado quanto provocativo, já que a definição de pulp-fiction corrente no fandom não guarda absolutamente qualquer similaridade com o Guimarães Rosa realizou. Mas seria uma beleza se guardasse.
Podemos dizer que Guimarães Rosa fez ficção fantástica? Esta é uma pergunta tão sem resposta quanto os próprios textos do autor. Fica ao critério do leitor. Pessoalmente, acho que é um ótimo argumento numa roda de críticos antipáticos a fc&f, mas isso é o que menos importa. A melhor contribuição de Tavares com seus ensaios é reabrir a picada que Guimarães Rosa inaugurou na mata fechada e desconhecida que é a ficção fantástica brasileira. Há um caminho ali, e ele é seguro e honesto, sendo hard e soft e horror e fantasia e ficção científica, um por um ou todos ao mesmo tempo. E, acima de tudo, sendo literatura brasileira sem receio até de ser mainstream.
Nem todos os fãs de ficção científica e fantasia gostam quando algum estudioso descobre pontes entre o gênero fantástico e o cânone literário, pois isso parece retirar deles parte da autoridade. Afinal, se um figurão “de fora” de repente é inserido no fantástico, todos os argumentos ficam comprometidos até que o mesmo seja lido e estudado. No imaginário do fandom, os gêneros são quase uma propriedade particular, um espaço reservado no qual se pode, por exemplo, impedir que um autor do mainstream trafegue, uma pequena vingança à falácia que o mercado maldosamente bloqueia o acesso dos autores de gênero ao público.
Por outro lado, há fãs que gostam de ver grandes nomes da literatura envolvidos com a ficção de gênero exclusivamente para se sentirem um pouco melhor dentro de um nicho desprestigiado cultural e comercialmente.
Nem uma nem outra foram intenções do escritor pernambucano Braulio Tavares quando se debruçou sobre a obra de Guimarães Rosa em busca de vínculos com a ficção fantástica. Historicamente, Tavares tem dedicado boa parte de seu trabalho de pesquisa a identificar a fisionomia da ficção fantástica brasileira, com objetivos historiográficos, técnicos e estéticos, ou um pouco mais egoístas, qual sejam, descobrir caminhos que ele mesmo, como autor fantástico, pode trilhar. Ao compartilhar com os leitores o resultado de suas análises, ajuda outros autores e o próprio fã a entenderem a ficção fantástica e o que a torna inequivocamente brasileira.
Tavares já presenteou os leitores com diversos livros de ficção e não-ficção, como a coletânea A espinha dorsal da memória/ Mundo Fantasmo (Rocco, 1989), o romance A máquina voadora (Rocco, 1994) e os ensaios O que é ficção científica (Brasiliense, 1986) e Um rasgão no real (Marca de Fantasia, 2005), entre outros. Em A pulp fiction de Guimarães Rosa, seu segundo livro pela prestigiosa editora independente Marca de Fantasia, reuniu ensaios sobre trabalhos curtos de Rosa em três fases distintas, identificando influências, ferramentas narrativas e a forma roseana de pensar a ficção como peça de arte literária inserida na tradição cultural brasileira.
O primeiro ensaio, que traz o nome do volume, foi originalmente publicado no “Caderno de Sábado” do Jornal da Tarde, em 1998. Nele, Tavares trata de alguns contos da fase inicial de Guimarães Rosa, quando ele era ainda jovem. “O mistério de Highmore Hall” foi publicado em 1929 na revista O Cruzeiro, quando Rosa tinha apenas 21 anos. É um conto de contornos góticos, com um mistério de morte e horror num velho castelo escocês. Fica claro que Rosa conhecia – e gostava – dos textos de Edgar Alan Poe e Alexandre Dumas, e seguiu-lhes cuidadosamente os passos. Revela assim que, em seu início, Rosa agia exatamente da mesma forma que os atuais autores-fãs: escrevia pastiches de seus autores favoritos; bem escritos mas, ainda assim, pastiches.
O segundo conto tratado é “Makiné”, publicado em O Jornal, em 1930. Trata-se de uma dark-fantasy que se passa durante a visita dos fenícios às terras dos tupinambás. Ainda que a história lembre as prosas de Clark Ashton Smith e Robert Howard, já mostra que Rosa não estava satisfeito em apenas repetir-lhes, e tratou de inserir um Brasil pré-cabralino, geograficamente reconhecível: Maquiné é uma famosa gruta da região em que Guimarães Rosa nasceu. Desta forma, Rosa repete também o processo de autoconsciência dos autores do fandom brasileiro que, a certa altura, perceberam que era necessário dar feição nacional a ficção que faziam. Ainda que o texto continue a parecer escrito por um estrangeiro, foi um passo enorme em apenas alguns meses de atividade. Os autores-fãs tiveram muito mais dificuldade em dar esse passo.
“Tempo e fatalidade” saiu em O Cruzeiro, em 1930. Conta a história de um enxadrista que vai participar de um torneio no sul da Alemanha e acaba envolvido por um mistério de deuses antigos e estados alterados de consciência. Ainda que não tenha o regionalismo imposto, como visto no exemplo anterior, este conto apontou os caminhos de Rosa no trato com o simbolismo mitológico e a luta do bem contra o mal, que igualmente caracterizam a sua obra. Também já ensaia o zelo na escolha dos nomes dos personagens, que sempre trazem sentidos ocultos. Ou seja, está neste conto o gérmen do que viria a ser a proposta literária roseana e, neste aspecto, os paralelos com a ficção fantástica brasileira só vão ser encontrados nos trabalhos dos autores mais amadurecidos da fc&f brasileira, como por exemplo André Carneiro, Rubens Teixeira Scavone e Dinah Silveira de Queirós que, curiosamente, nunca foram autores-fãs.
O segundo ensaio, inédito, avalia minuciosamente um trabalho um pouco mais longo de Guimarães Rosa, a novela “O recado do morro”, publicada em 1956 na coletânea Corpo de baile. Acompanhar a dissecação que Tavares realiza é um verdadeiro cabo-de-guerra, pois esta novela é fruto de um Guimarães Rosa maduro e pronto.
Quem já leu a ficção roseana sabe que uma das muitas características do autor de Grande sertão veredas é uma prosa repleta de termos desconhecidos e desusados, que remetem à linguagem sertaneja. Ainda que possa soar incômoda a princípio, a musicalidade do texto leva o leitor a vestir o espírito sertanejo, evocando raízes profundas que nem mesmo acreditava ter, tanto que depois de algum tempo, a prosa clareia e ganha uma vitalidade especial, fruto de um cuidado nada casual.
Tavares nos conduz nessa rede intrincada e explica cada detalhe dessa história que repete a saga do herói medieval transposta com maestria ao sertão mineiro. Uma saga de viagem em que um mistificado Morro da Garça, através de um eremita, faz chegar uma profecia ao herói, prediz o futuro e pode salvar-lhe a vida. Não há aqui mais nenhum paralelo possível aos fenômenos criativos dos autores do fandom. Nenhum sequer chegou-lhe aos pés e é uma revelação perceber como uma narrativa fantástica absolutamente regional pode ser tão universal.
Fecha o volume um ensaio em que Tavares realiza, de forma igualmente interessante e detalhada, o entendimento do conto “Um moço muito branco“, originalmente publicado em 1962 na coletânea Outras estórias. Trata-se do trabalho de Rosa mais claramente identificado com a ficção científica, visto que relata a experiência de uma comunidade interiorana que faz contato com um homem tão estranho e poderoso que só lhe resta ser alienígena. É claro que isso não é explícito e, ao final da história, não há um desfecho conclusivo, o que Tavares aproveita para apresentar seu estudo sobre os protocolos de pergunta e resposta, que podem ser observados na ficção de forma geral e na fantástica mais explicitamente.
Em poucas páginas, que se leem rapidamente, Tavares reúne uma quantidade absurda de informações e considerações, cita dezenas de autores nacionais e estrangeiros, de fantasia ou não, com os quais a obra roseana dialoga. Também não decepciona o leitor ao inserir, ilustrando suas análises, trechos brilhantes dos trabalhos avaliados, trazendo a própria obra de Guimarães Rosa aos olhos de leitores que, de outra forma, não se entusiasmariam com a tarefa de ler esse grande autor brasileiro.
O título do volume, como se vê, não é tão adequado quanto provocativo, já que a definição de pulp-fiction corrente no fandom não guarda absolutamente qualquer similaridade com o Guimarães Rosa realizou. Mas seria uma beleza se guardasse.
Podemos dizer que Guimarães Rosa fez ficção fantástica? Esta é uma pergunta tão sem resposta quanto os próprios textos do autor. Fica ao critério do leitor. Pessoalmente, acho que é um ótimo argumento numa roda de críticos antipáticos a fc&f, mas isso é o que menos importa. A melhor contribuição de Tavares com seus ensaios é reabrir a picada que Guimarães Rosa inaugurou na mata fechada e desconhecida que é a ficção fantástica brasileira. Há um caminho ali, e ele é seguro e honesto, sendo hard e soft e horror e fantasia e ficção científica, um por um ou todos ao mesmo tempo. E, acima de tudo, sendo literatura brasileira sem receio até de ser mainstream.
sábado, 18 de março de 2023
Resenha do Almanaque: Obra completa, Murilo Rubião
Obra completa, Murilo Rubião. 232 páginas. Coleção Companhia de Bolso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Sempre que alguém decide relacionar os mais significativos fantasistas da literatura brasileira, o nome do mineiro Murilo Rubião (1916-1991) é um dos primeiros a serem lembrados. E é surpreendente que seja assim, considerando que é um autor pouco lido, cuja obra é reduzida, limitando-se a apenas trinta e três contos publicados entre 1947 e 1991.
O fato de Rubião ser tão lembrado talvez seja efeito direto da força de seus textos, emotivos, perturbadores e extremamente bem escritos. Era um perfeccionista que nunca dava um texto por terminado. A cada republicação – suas coletâneas sempre traziam republicações ao lado de inéditos – ele os revisava como um joalheiro caprichoso.
Seu primeiro livro foi O ex-mágico, publicado em 1947. Depois vieram A estrela vermelha (1953), Os dragões e outros contos (1965), O pirotécnico Zacarias e O convidado (ambos de 1974). Antes de sua morte, ainda publicou A casa do girassol vermelho e O homem do boné cinzento, em 1991. Seus livros foram traduzidos para o inglês, alemão, espanhol, tcheco e publicados em diversos países.
O fantástico de Rubião é muito pessoal. O absurdo surge de forma natural, sendo aceito placidamente pelos personagens, como nas histórias de Franz Kafka (1833-1924). Não se trata exatamente de uma ficção de gênero e é de difícil classificação. Tal como os textos de outro importante fantasista brasileiro contemporâneo, o goiano José J. Veiga (1915-1999), Rubião não segue protocolos específicos. Há um amálgama de ficção científica, fantasia, horror e realismo mágico, num naturalismo muitas vezes desconcertante e, quase sempre, exasperante.
Rubião afirmava ter sido influenciado pela leitura de Machado de Assis e da Bíblia Sagrada. Tanto que, cada um de seus contos traz uma epígrafe bíblica que dialoga intimamente com o contexto, as vezes sendo eles mesmos a chave do entendimento da história ou da ampliação desse entendimento para outras interpretações.
Obra completa, publicado na coleção de bolso da Companhia das Letras, apresenta num único volume todos os trinta e três contos que Rubião publicou em vida (ele deixou alguns trabalhos inéditos), pintando o mais amplo panorama da obra desse escritor.
Destaco aqui alguns daqueles que mais me impressionaram, embora nenhum possa ser preterido. Cada conto de Rubião encerra um universo completo a ser explorado e supera qualquer escala de avaliação que eu possa um dia ter sonhado estabelecer.
"O pirotécnico Zacarias" abre a coletânea e é provavelmente o seu conto mais conhecido. Um homem morre atropelado na beira de uma estrada, mas ressuscita e segue sua existência, mantendo as mesmas atividades de quando ainda vivia.
Em "O ex- mágico da Taberna Minhota" um homem ressente-se da sua habilidade natural de realizar magia verdadeira e vive infeliz por não conseguir ter uma vida normal. Busca desesperadamente pelo anonimato, sempre fracassando, uma vez que não tem controle sobre seus poderes. Um dia, porém, a magia acaba.
"Bárbara" narra o martírio de um homem que faz de tudo para satisfazer os pedidos absurdos de sua esposa. E quanto mais ele a adula, mais ela engorda.
Em "A cidade", um caixeiro viajante chega de trem a uma cidade estranha e, quando pede uma informação banal, é preso, porque a polícia estava na captura de um homem perigoso cuja única identificação era que ele fazia perguntas. Desesperado, o homem vê que fica cada vez mais difícil explicar sua inocência, pois cada pergunta reforça sua culpa.
"Os dragões" conta a história de um homem que adota dois filhotes de dragão e os cria como se fosse seus filhos, passando por muitos problemas na educação dos mesmos.
"Teleco, o Coelhinho" é um dos textos mais bizarros da coletânea. Um homem recolhe em sua casa um estranho ser metamorfo, que muda de aparência conforme seu estado de espírito. A princípio a relação é divertida, mas deteriora-se ao longo do tempo até que a vida em comum se torna insuportável.
"O edifício" conta como é executado um ousado projeto arquitetônico: um edifício com centenas de andares. Depois de séculos de trabalho, quando o prédio já atinge 900 andares, o projeto entra em colapso financeiro, desestabilizando a vida de toda a sociedade.
"A fila" é o melhor texto do livro. Um homem do interior vai à cidade grande levando para um industrial importante uma mensagem que só pode ser entregue pessoalmente. Mas a fila de atendimento nunca acaba e sua vida vira um verdadeiro inferno.
Em "O bloqueio" um homem recentemente separado da esposa dominadora, esconde-se no apartamento de um prédio que parece estar sendo demolido.
"A diáspora" conta a história de um grupo de trabalhadores que chega a uma pequena cidade onde se pretende construir uma ponte, mas a população local se recusa a permitir que a obra seja executada.
"Epidólia" tem um componente lovecraftiano perturbador. Conta a história de um homem que persegue obsessivamente a mulher que o abandonou. A busca o leva a um lugar cuja geografia tem um comportamento bizarro, onde ele obtém estranhas revelações sobre a vida da moça.
"O convidado" é um texto que o autor afirma ter passado vinte anos escrevendo. Um homem vai a uma recepção misteriosa, feita em homenagem a um convidado desconhecido. Aborrecido com as pessoas dali, ele tenta ir embora, mas simplesmente não consegue afastar-se do lugar.
Um conceito similar envolve "Os comensais", texto que fecha a coletânea. Um homem faz suas refeições num restaurante em que todos os demais frequentadores estão imóveis. Dia após dia, ele percebe que os rostos mudam, embora ele nunca veja ninguém entrando ou saindo do lugar. Garçons trocam os pratos continuamente, mas apenas ele come o que é servido. Perturbado, ele tenta racionalizar o que acontece, mas quanto mais se envolve na questão, menos sentido encontra.
Como se pode perceber, a obra de Murilo Rubião é vultosa em significados, um amplo cabedal de ideias ainda a ser estudado. Um monumento praticamente desconhecido tanto do grande público quanto do fandom brasileiro, apesar do nome do autor estar na ponta da língua dos comentaristas.
Rubião é, certamente, um dos melhores modelos para uma ficção fantástica brasileira, que ainda se debate em busca de sua fisionomia.
Sempre que alguém decide relacionar os mais significativos fantasistas da literatura brasileira, o nome do mineiro Murilo Rubião (1916-1991) é um dos primeiros a serem lembrados. E é surpreendente que seja assim, considerando que é um autor pouco lido, cuja obra é reduzida, limitando-se a apenas trinta e três contos publicados entre 1947 e 1991.
O fato de Rubião ser tão lembrado talvez seja efeito direto da força de seus textos, emotivos, perturbadores e extremamente bem escritos. Era um perfeccionista que nunca dava um texto por terminado. A cada republicação – suas coletâneas sempre traziam republicações ao lado de inéditos – ele os revisava como um joalheiro caprichoso.
Seu primeiro livro foi O ex-mágico, publicado em 1947. Depois vieram A estrela vermelha (1953), Os dragões e outros contos (1965), O pirotécnico Zacarias e O convidado (ambos de 1974). Antes de sua morte, ainda publicou A casa do girassol vermelho e O homem do boné cinzento, em 1991. Seus livros foram traduzidos para o inglês, alemão, espanhol, tcheco e publicados em diversos países.
O fantástico de Rubião é muito pessoal. O absurdo surge de forma natural, sendo aceito placidamente pelos personagens, como nas histórias de Franz Kafka (1833-1924). Não se trata exatamente de uma ficção de gênero e é de difícil classificação. Tal como os textos de outro importante fantasista brasileiro contemporâneo, o goiano José J. Veiga (1915-1999), Rubião não segue protocolos específicos. Há um amálgama de ficção científica, fantasia, horror e realismo mágico, num naturalismo muitas vezes desconcertante e, quase sempre, exasperante.
Rubião afirmava ter sido influenciado pela leitura de Machado de Assis e da Bíblia Sagrada. Tanto que, cada um de seus contos traz uma epígrafe bíblica que dialoga intimamente com o contexto, as vezes sendo eles mesmos a chave do entendimento da história ou da ampliação desse entendimento para outras interpretações.
Obra completa, publicado na coleção de bolso da Companhia das Letras, apresenta num único volume todos os trinta e três contos que Rubião publicou em vida (ele deixou alguns trabalhos inéditos), pintando o mais amplo panorama da obra desse escritor.
Destaco aqui alguns daqueles que mais me impressionaram, embora nenhum possa ser preterido. Cada conto de Rubião encerra um universo completo a ser explorado e supera qualquer escala de avaliação que eu possa um dia ter sonhado estabelecer.
"O pirotécnico Zacarias" abre a coletânea e é provavelmente o seu conto mais conhecido. Um homem morre atropelado na beira de uma estrada, mas ressuscita e segue sua existência, mantendo as mesmas atividades de quando ainda vivia.
Em "O ex- mágico da Taberna Minhota" um homem ressente-se da sua habilidade natural de realizar magia verdadeira e vive infeliz por não conseguir ter uma vida normal. Busca desesperadamente pelo anonimato, sempre fracassando, uma vez que não tem controle sobre seus poderes. Um dia, porém, a magia acaba.
"Bárbara" narra o martírio de um homem que faz de tudo para satisfazer os pedidos absurdos de sua esposa. E quanto mais ele a adula, mais ela engorda.
Em "A cidade", um caixeiro viajante chega de trem a uma cidade estranha e, quando pede uma informação banal, é preso, porque a polícia estava na captura de um homem perigoso cuja única identificação era que ele fazia perguntas. Desesperado, o homem vê que fica cada vez mais difícil explicar sua inocência, pois cada pergunta reforça sua culpa.
"Os dragões" conta a história de um homem que adota dois filhotes de dragão e os cria como se fosse seus filhos, passando por muitos problemas na educação dos mesmos.
"Teleco, o Coelhinho" é um dos textos mais bizarros da coletânea. Um homem recolhe em sua casa um estranho ser metamorfo, que muda de aparência conforme seu estado de espírito. A princípio a relação é divertida, mas deteriora-se ao longo do tempo até que a vida em comum se torna insuportável.
"O edifício" conta como é executado um ousado projeto arquitetônico: um edifício com centenas de andares. Depois de séculos de trabalho, quando o prédio já atinge 900 andares, o projeto entra em colapso financeiro, desestabilizando a vida de toda a sociedade.
"A fila" é o melhor texto do livro. Um homem do interior vai à cidade grande levando para um industrial importante uma mensagem que só pode ser entregue pessoalmente. Mas a fila de atendimento nunca acaba e sua vida vira um verdadeiro inferno.
Em "O bloqueio" um homem recentemente separado da esposa dominadora, esconde-se no apartamento de um prédio que parece estar sendo demolido.
"A diáspora" conta a história de um grupo de trabalhadores que chega a uma pequena cidade onde se pretende construir uma ponte, mas a população local se recusa a permitir que a obra seja executada.
"Epidólia" tem um componente lovecraftiano perturbador. Conta a história de um homem que persegue obsessivamente a mulher que o abandonou. A busca o leva a um lugar cuja geografia tem um comportamento bizarro, onde ele obtém estranhas revelações sobre a vida da moça.
"O convidado" é um texto que o autor afirma ter passado vinte anos escrevendo. Um homem vai a uma recepção misteriosa, feita em homenagem a um convidado desconhecido. Aborrecido com as pessoas dali, ele tenta ir embora, mas simplesmente não consegue afastar-se do lugar.
Um conceito similar envolve "Os comensais", texto que fecha a coletânea. Um homem faz suas refeições num restaurante em que todos os demais frequentadores estão imóveis. Dia após dia, ele percebe que os rostos mudam, embora ele nunca veja ninguém entrando ou saindo do lugar. Garçons trocam os pratos continuamente, mas apenas ele come o que é servido. Perturbado, ele tenta racionalizar o que acontece, mas quanto mais se envolve na questão, menos sentido encontra.
Como se pode perceber, a obra de Murilo Rubião é vultosa em significados, um amplo cabedal de ideias ainda a ser estudado. Um monumento praticamente desconhecido tanto do grande público quanto do fandom brasileiro, apesar do nome do autor estar na ponta da língua dos comentaristas.
Rubião é, certamente, um dos melhores modelos para uma ficção fantástica brasileira, que ainda se debate em busca de sua fisionomia.
sexta-feira, 17 de março de 2023
Resenha do Almanaque: Não somos humanos, Domingos Pellegrini
Não Somos Humanos: Romance Bioético, Domingos Pellegrini. 128 páginas. Ilustrações de Antonio Khel. São Paulo: Nova Alexandria, 2005.
Não somos humanos: romance bioético é um dos inúmeros exemplos da boa literatura fantástica realizada por autores que se dedicam principalmente ao mercado de livros infanto-juvenis. Não são poucos esses exemplos, como pode comprovar uma pesquisa rápida em qualquer biblioteca escolar ou na seção infantojuvenil das livrarias.
Os fãs de arte fantástica não buscam por estes livros por puro preconceito. Muitos deles pensam que a boa literatura de gênero, especialmente a ficção científica, não pode estar associada ao leitor infantojuvenil por ser uma literatura exclusiva aos culturalmente bem dotados. Mesmo alguns autores identificados com a ficção científica olham o mercado infantojuvenil com desprezo. Erram nos dois conceitos porque a ficção científica é, sim, um gênero propício e adequado para leitores jovens e não é, de modo algum, privilégio dos bem nascidos e bem educados.
Dessa forma, esses leitores deixam de conhecer trabalhos excelentes de autores premiados e bem aceitos pelo público, como é o caso de Júlio Emilio Brás, Simone Saueressig, Márcia Kupstas, Ivan Jaff e tantos outros, entre os quais também se encontra Domingos Pellegrini, contista, poeta e romancista premiado com o Jabuti de 1977 com O homem vermelho, seu livro de estreia. No gênero fantástico teve também publicados Tempo de guerra (Companhia das Letras, 1997) e O começo de tudo (Nova Alexandria, 2003).
Em Não somos humanos, o autor narra, num texto leve e direto, a história futurista de João Antônio e Ana Rita, casal de escravos numa fazenda industrial de frutas. Eles são hominis, clones humanos cujos códigos genéticos são manipulados em laboratório de forma a produzirem trabalhadores braçais perfeitos, fortes e estúpidos. Como acontece com os escravos em qualquer sociedade humana, os hominis são maltratados e humilhados por seus senhores.
Um dia, Ana Rita reage aos abusos de um guarda e João Antônio corre em seu socorro. Dominados, ambos são conduzidos para a reprogramação, um tratamento de choque que reduz a capacidade mental dos hominis e os torna mais dóceis. Porém eles conseguem escapar da reprogramação e fogem da fazenda.
Sem muito conhecimento do mundo para além das cercas, eles começam a descobrir coisas surpreendentes, inclusive o interesse sexual mútuo, mas têm de continuar a fuga quando percebem que estão sendo caçados.
Acidentalmente chegam a uma casa onde habita um velho, o Professor, que é auxiliado por um homini intelectual chamado Jonas. O Professor esconde João Antônio e Ana Rita dos perseguidores e depois os encaminha, guiados por Jonas, para uma comunidade de hominis fugidos que vivem nas montanhas.
Lá, João Antônio e Ana Rita encontram uma realidade que a princípio é para eles maravilhosa: hominis machos e fêmeas vivendo livres e juntos, em democracia, subsistindo por seus próprios esforços. Com o passar do tempo, aprendem muitas coisas novas e percebem que nem tudo ali é maravilhoso. Há hominis que trabalham mais que outros, alguns tem privilégios e outros não tem nada. Há inveja e ciúme, e mesmo João Antônio e Ana Rita vão ter de enfrentar esse tipo de sentimentos.
Como ainda existe o perigo dos humanos recapturarem os hominis, ou coisa pior, é formada uma comissão que vai encontrar-se com os líderes de um movimento de libertação dos hominis, e João Antônio é recrutado para participar. A comissão vai à cidade grande cumprir sua tarefa e é lá que João Antônio se depara com situações extremas de convívio entre humanos e hominis e sente, mais uma vez, o que é estar do lado mais fraco. Enquanto isso, na comunidade, Ana Rita tem de enfrentar a antipatia perigosa de Sara, companheira de um dos líderes da comunidade que vê em Ana Rita uma rival política. Mas há outras serpentes dissimulas no paraíso dos hominis das montanhas, e o holocausto vai, invariavelmente, alcançá-los.
Não somos humanos está longe de ser um trabalho de ponta no gênero da ficção científica. De fato, há muitos textos na mesma linha, mais agudos e mais efetivos tanto no aspecto formal quanto na discussão da ética da clonagem, do preconceito e da escravidão. O exemplo mais expressivo dentre eles é Admirável mundo novo de Aldous Huxley, com o qual o trabalho de Domingos Pellegrini dialoga com mais proximidade.
Não há os arroubos de cientificismo típicos da ficção científica, nem elaboradas teorias paracientíficas para justificar ou explicar as extrapolações adotadas, mesmo assim o texto se sustenta, sem qualquer furo ou inconsistência, pois Pellegrini escreve bem e ousa ir, muito à vontade, onde a maioria dos autores de ficção científica têm dificuldades de navegar. Por exemplo, ainda que tenha um texto simples e leve, Pellegrini não evita inserir ótimas cenas de sexo na narrativa. Da mesma forma, não se furta a tratar a crueldade de modo muito cru e chocante, uma vez que a pior das heranças humanas não deixou de aparecer também entre os hominis, igualando senhores e servos senão na vida, pelo menos na tragédia.
E o leitor conclui que, afinal, os líderes hominis estão errados numa coisa: eles também são humanos, sim.
Não somos humanos: romance bioético é um dos inúmeros exemplos da boa literatura fantástica realizada por autores que se dedicam principalmente ao mercado de livros infanto-juvenis. Não são poucos esses exemplos, como pode comprovar uma pesquisa rápida em qualquer biblioteca escolar ou na seção infantojuvenil das livrarias.
Os fãs de arte fantástica não buscam por estes livros por puro preconceito. Muitos deles pensam que a boa literatura de gênero, especialmente a ficção científica, não pode estar associada ao leitor infantojuvenil por ser uma literatura exclusiva aos culturalmente bem dotados. Mesmo alguns autores identificados com a ficção científica olham o mercado infantojuvenil com desprezo. Erram nos dois conceitos porque a ficção científica é, sim, um gênero propício e adequado para leitores jovens e não é, de modo algum, privilégio dos bem nascidos e bem educados.
Dessa forma, esses leitores deixam de conhecer trabalhos excelentes de autores premiados e bem aceitos pelo público, como é o caso de Júlio Emilio Brás, Simone Saueressig, Márcia Kupstas, Ivan Jaff e tantos outros, entre os quais também se encontra Domingos Pellegrini, contista, poeta e romancista premiado com o Jabuti de 1977 com O homem vermelho, seu livro de estreia. No gênero fantástico teve também publicados Tempo de guerra (Companhia das Letras, 1997) e O começo de tudo (Nova Alexandria, 2003).
Em Não somos humanos, o autor narra, num texto leve e direto, a história futurista de João Antônio e Ana Rita, casal de escravos numa fazenda industrial de frutas. Eles são hominis, clones humanos cujos códigos genéticos são manipulados em laboratório de forma a produzirem trabalhadores braçais perfeitos, fortes e estúpidos. Como acontece com os escravos em qualquer sociedade humana, os hominis são maltratados e humilhados por seus senhores.
Um dia, Ana Rita reage aos abusos de um guarda e João Antônio corre em seu socorro. Dominados, ambos são conduzidos para a reprogramação, um tratamento de choque que reduz a capacidade mental dos hominis e os torna mais dóceis. Porém eles conseguem escapar da reprogramação e fogem da fazenda.
Sem muito conhecimento do mundo para além das cercas, eles começam a descobrir coisas surpreendentes, inclusive o interesse sexual mútuo, mas têm de continuar a fuga quando percebem que estão sendo caçados.
Acidentalmente chegam a uma casa onde habita um velho, o Professor, que é auxiliado por um homini intelectual chamado Jonas. O Professor esconde João Antônio e Ana Rita dos perseguidores e depois os encaminha, guiados por Jonas, para uma comunidade de hominis fugidos que vivem nas montanhas.
Lá, João Antônio e Ana Rita encontram uma realidade que a princípio é para eles maravilhosa: hominis machos e fêmeas vivendo livres e juntos, em democracia, subsistindo por seus próprios esforços. Com o passar do tempo, aprendem muitas coisas novas e percebem que nem tudo ali é maravilhoso. Há hominis que trabalham mais que outros, alguns tem privilégios e outros não tem nada. Há inveja e ciúme, e mesmo João Antônio e Ana Rita vão ter de enfrentar esse tipo de sentimentos.
Como ainda existe o perigo dos humanos recapturarem os hominis, ou coisa pior, é formada uma comissão que vai encontrar-se com os líderes de um movimento de libertação dos hominis, e João Antônio é recrutado para participar. A comissão vai à cidade grande cumprir sua tarefa e é lá que João Antônio se depara com situações extremas de convívio entre humanos e hominis e sente, mais uma vez, o que é estar do lado mais fraco. Enquanto isso, na comunidade, Ana Rita tem de enfrentar a antipatia perigosa de Sara, companheira de um dos líderes da comunidade que vê em Ana Rita uma rival política. Mas há outras serpentes dissimulas no paraíso dos hominis das montanhas, e o holocausto vai, invariavelmente, alcançá-los.
Não somos humanos está longe de ser um trabalho de ponta no gênero da ficção científica. De fato, há muitos textos na mesma linha, mais agudos e mais efetivos tanto no aspecto formal quanto na discussão da ética da clonagem, do preconceito e da escravidão. O exemplo mais expressivo dentre eles é Admirável mundo novo de Aldous Huxley, com o qual o trabalho de Domingos Pellegrini dialoga com mais proximidade.
Não há os arroubos de cientificismo típicos da ficção científica, nem elaboradas teorias paracientíficas para justificar ou explicar as extrapolações adotadas, mesmo assim o texto se sustenta, sem qualquer furo ou inconsistência, pois Pellegrini escreve bem e ousa ir, muito à vontade, onde a maioria dos autores de ficção científica têm dificuldades de navegar. Por exemplo, ainda que tenha um texto simples e leve, Pellegrini não evita inserir ótimas cenas de sexo na narrativa. Da mesma forma, não se furta a tratar a crueldade de modo muito cru e chocante, uma vez que a pior das heranças humanas não deixou de aparecer também entre os hominis, igualando senhores e servos senão na vida, pelo menos na tragédia.
E o leitor conclui que, afinal, os líderes hominis estão errados numa coisa: eles também são humanos, sim.
quarta-feira, 15 de março de 2023
Resenha do Almanaque: Macacos, Jorge Moreira Nunes
Macacos e outros fragmentos ao acaso, Jorge Moreira Nunes. 126 páginas. Differential Comunicação e Editora, Rio de Janeiro, 2007.
Coletânea de contos de Jorge Moreira Nunes, transformada em romance graças ao talento do autor, que compôs uma estrutura textual similar a uma argamassa, ligando cada um dos contos de forma muito competente. Isso porque adotou um eficiente discurso metalinguístico que não enfada o leitor e dá nuances importantes ao conjunto, que não seriam possíveis apenas pela simples justaposição dos trabalhos que, em si, não apresentam muita relação. Os contos que formam a coletânea estão comentados a seguir.
Em “Terraço”, dois amigos barra-pesada invadem um prédio para cobrar uma dívida de um produtor de vídeos pornôs. Interrompem uma gravação e pressionam a vítima para pagar muito mais do que devia. A negociação os leva a propor participar das filmagens, aproveitando a atriz nua que já lá estava, e é a partir daí que as coisas saem do controle. A narrativa é rápida, vigorosa e surpreendente. A ambientação é muito boa, dando verossimilhança aos fatos narrados. É a melhor peça da coletânea, sem um pingo de fantástico.
“Maelstrom” é um conto em estilo gótico que apresenta o drama de um escritor durante uma noite tempestuosa em sua biblioteca. Uma peça que parece cumprir uma função de contraponto estilístico, pois não se articula com as demais peças.
“Presente de mãe” conta sobre como um torcedor fanático de futebol usa um mantra milagroso, que poderia realizar qualquer um de seus sonhos, apenas para fazer o seu time ganhar a final de um campeonato que parecia perdido. A narrativa é muito boa, com descrições vívidas e convincentes de cenários e emoções, apareceu pela primeira vez no fanzine Megalon.
“Saviana” é um conto de ficção científica anteriormente visto na antologia Intempol (Ano-Luz, 2001), que narra o drama de uma jovem mãe, nativa de uma ilha no Pacífico, que se culpa por não ter resgatado o filho falecido na erupção vulcânica de Cracatoa. A chance para sua redenção aparece na figura de um fugitivo temporal que escolheu a ilha como refúgio. Eles têm um relacionamento amoroso, mas o fugitivo contrai um vírus fatal. Quando percebe que não vai escapar da doença, ensina a mulher a usar a sua máquina do tempo e ela tem finalmente uma chance de realizar seu sonho.
“Ouroboros” é outra história de ficção científica, desta vez ambientada na cidade do Rio de Janeiro, mil anos no futuro. O tempo foi bom para a cidade, que está mais limpa e tranquila, devido aos avanços tecnológicos e culturais da humanidade, como a capacidade telepática que tornou as línguas obsoletas. Tudo graças a um supercomputador orbital que fornece todo o conhecimento necessário e pode instruir qualquer pessoa instantaneamente, desde tocar um instrumento musical a construir um navio. Mas o personagem principal desta história é um deslocado, que deseja aprender as coisas pelo mundo antigo, especialmente por línguas, e pelos livros de uma conservada biblioteca. Em suas pesquisas, eles encontram um fragmento de um texto, que esconde em si o mistério que é a estrutura da realidade, presente e futura.
Porém, como foi dito a princípio, o livro não se esgota com os contos. Nunes costurou um excelente background para dar-lhes sustentação, com textos intercalados aos contos, que levam o título de “La Granada”. Neles, o autor usa a si mesmo como personagem que, perto da virada do milênio, no bar La Granada (à beira de uma das praias do Rio de Janeiro), dialoga com Vald, um “amigo” que o encontra periodicamente no bar, recebe dele os manuscritos dos contos para ler e, no encontro seguinte, debate sobre a qualidade de cada conto, suas influências e os conceitos envolvidos, com citações a uma série de temas da fc&f brasileira e mundial.
Nunes não pega leve consigo mesmo. As críticas de Vlad são extremamente severas, além do que imagino que o próprio autor considerasse realista pois, se assim fosse, nunca teria publicado os contos. Mas fica claro que o discurso agressivo do Vlad não é sincero. Ele parece ter ciúmes da capacidade criativa de Nunes e vinga-se ganhando sucessivas partidas de um jogo de xadrez disputado num tabuleiro imaginário. Mas a partida atual não vai bem. A cada encontro, Vlad parece perder um pouco de sua consistência, especialmente quando o escritor lhe apresenta o manuscrito de um texto desenvolvido na internet, uma corrente escrita por milhares de autores anônimos que encadearam palavras a partir de vínculos aleatórios de ideias, fonemas e conceitos. Os textos são curiosos e perturbadores, e podem ser lidos em quatro fragmentos espalhados entre os contos, chamados simplesmente de “Macacos”. O texto causa um efeito devastador em Vlad que, a partir de então, desvanece-se acentuadamente a cada encontro, enquanto se aproxima o fim do segundo milênio.
O clímax desse cabo-de-guerra metalinguístico vai ocorrer no derradeiro texto do volume, chamado “O vôo do corvo”, que narra o encontro entre Nunes e Vlad na noite do reveillon, quando os dois amigos se reúnem para os lances decisivos da partida, encerrando o jogo, o milênio e uma etapa na vida do escritor.
Neste aspecto, Macacos e outros fragmentos ao acaso parece ser uma espécie de autobibliografia catártica, que reúne aquilo que Nunes considerou ser o fruto maduro de sua carreira ao longo do século XX. E ainda, de quebra, deu ao leitor um panorama histórico significativo do estado do fandom brasileiro nos anos 1990, na medida em que comenta seu envolvimento com vários projetos ocorridos dentro de seus muros, incluindo antologias e fanzines. O livro, premiado em 1998 com a Bolsa para Novos Escritores da Fundação Biblioteca Nacional, é importante para quem tem interesse pela fc&f brasileira e excelente para quem não está nem um pouco interessado nisso, pois o livro sustenta-se em uma pletora de boas ideias.
Coletânea de contos de Jorge Moreira Nunes, transformada em romance graças ao talento do autor, que compôs uma estrutura textual similar a uma argamassa, ligando cada um dos contos de forma muito competente. Isso porque adotou um eficiente discurso metalinguístico que não enfada o leitor e dá nuances importantes ao conjunto, que não seriam possíveis apenas pela simples justaposição dos trabalhos que, em si, não apresentam muita relação. Os contos que formam a coletânea estão comentados a seguir.
Em “Terraço”, dois amigos barra-pesada invadem um prédio para cobrar uma dívida de um produtor de vídeos pornôs. Interrompem uma gravação e pressionam a vítima para pagar muito mais do que devia. A negociação os leva a propor participar das filmagens, aproveitando a atriz nua que já lá estava, e é a partir daí que as coisas saem do controle. A narrativa é rápida, vigorosa e surpreendente. A ambientação é muito boa, dando verossimilhança aos fatos narrados. É a melhor peça da coletânea, sem um pingo de fantástico.
“Maelstrom” é um conto em estilo gótico que apresenta o drama de um escritor durante uma noite tempestuosa em sua biblioteca. Uma peça que parece cumprir uma função de contraponto estilístico, pois não se articula com as demais peças.
“Presente de mãe” conta sobre como um torcedor fanático de futebol usa um mantra milagroso, que poderia realizar qualquer um de seus sonhos, apenas para fazer o seu time ganhar a final de um campeonato que parecia perdido. A narrativa é muito boa, com descrições vívidas e convincentes de cenários e emoções, apareceu pela primeira vez no fanzine Megalon.
“Saviana” é um conto de ficção científica anteriormente visto na antologia Intempol (Ano-Luz, 2001), que narra o drama de uma jovem mãe, nativa de uma ilha no Pacífico, que se culpa por não ter resgatado o filho falecido na erupção vulcânica de Cracatoa. A chance para sua redenção aparece na figura de um fugitivo temporal que escolheu a ilha como refúgio. Eles têm um relacionamento amoroso, mas o fugitivo contrai um vírus fatal. Quando percebe que não vai escapar da doença, ensina a mulher a usar a sua máquina do tempo e ela tem finalmente uma chance de realizar seu sonho.
“Ouroboros” é outra história de ficção científica, desta vez ambientada na cidade do Rio de Janeiro, mil anos no futuro. O tempo foi bom para a cidade, que está mais limpa e tranquila, devido aos avanços tecnológicos e culturais da humanidade, como a capacidade telepática que tornou as línguas obsoletas. Tudo graças a um supercomputador orbital que fornece todo o conhecimento necessário e pode instruir qualquer pessoa instantaneamente, desde tocar um instrumento musical a construir um navio. Mas o personagem principal desta história é um deslocado, que deseja aprender as coisas pelo mundo antigo, especialmente por línguas, e pelos livros de uma conservada biblioteca. Em suas pesquisas, eles encontram um fragmento de um texto, que esconde em si o mistério que é a estrutura da realidade, presente e futura.
Porém, como foi dito a princípio, o livro não se esgota com os contos. Nunes costurou um excelente background para dar-lhes sustentação, com textos intercalados aos contos, que levam o título de “La Granada”. Neles, o autor usa a si mesmo como personagem que, perto da virada do milênio, no bar La Granada (à beira de uma das praias do Rio de Janeiro), dialoga com Vald, um “amigo” que o encontra periodicamente no bar, recebe dele os manuscritos dos contos para ler e, no encontro seguinte, debate sobre a qualidade de cada conto, suas influências e os conceitos envolvidos, com citações a uma série de temas da fc&f brasileira e mundial.
Nunes não pega leve consigo mesmo. As críticas de Vlad são extremamente severas, além do que imagino que o próprio autor considerasse realista pois, se assim fosse, nunca teria publicado os contos. Mas fica claro que o discurso agressivo do Vlad não é sincero. Ele parece ter ciúmes da capacidade criativa de Nunes e vinga-se ganhando sucessivas partidas de um jogo de xadrez disputado num tabuleiro imaginário. Mas a partida atual não vai bem. A cada encontro, Vlad parece perder um pouco de sua consistência, especialmente quando o escritor lhe apresenta o manuscrito de um texto desenvolvido na internet, uma corrente escrita por milhares de autores anônimos que encadearam palavras a partir de vínculos aleatórios de ideias, fonemas e conceitos. Os textos são curiosos e perturbadores, e podem ser lidos em quatro fragmentos espalhados entre os contos, chamados simplesmente de “Macacos”. O texto causa um efeito devastador em Vlad que, a partir de então, desvanece-se acentuadamente a cada encontro, enquanto se aproxima o fim do segundo milênio.
O clímax desse cabo-de-guerra metalinguístico vai ocorrer no derradeiro texto do volume, chamado “O vôo do corvo”, que narra o encontro entre Nunes e Vlad na noite do reveillon, quando os dois amigos se reúnem para os lances decisivos da partida, encerrando o jogo, o milênio e uma etapa na vida do escritor.
Neste aspecto, Macacos e outros fragmentos ao acaso parece ser uma espécie de autobibliografia catártica, que reúne aquilo que Nunes considerou ser o fruto maduro de sua carreira ao longo do século XX. E ainda, de quebra, deu ao leitor um panorama histórico significativo do estado do fandom brasileiro nos anos 1990, na medida em que comenta seu envolvimento com vários projetos ocorridos dentro de seus muros, incluindo antologias e fanzines. O livro, premiado em 1998 com a Bolsa para Novos Escritores da Fundação Biblioteca Nacional, é importante para quem tem interesse pela fc&f brasileira e excelente para quem não está nem um pouco interessado nisso, pois o livro sustenta-se em uma pletora de boas ideias.
terça-feira, 14 de março de 2023
Resenha do Almanaque: A Dama-Morcega, Giulia Moon
A dama-morcega: Narrativas de terror fantástico, Giulia Moon. 160 páginas. Coleção Novos Caminhos: Literatura Fantástica. São Paulo: Landy, 2006.
Ao longo dos primeiros anos deste século, evoluiu um novo subgênero na ficção fantástica, para além da ficção científica, do horror e da fantasia: a ficção vampírica, que se justifica pela grande quantidade de romances com vampiros publicados. Nesse modelo, temos ficções alternativa, científica, de horror e de fantasia, cada qual usando instrumental próprio mas, invariavelmente, prestando sua homenagem a esse que é um dos principais mitos modernos.
Dentro deste subgênero, é claro que se destacam as histórias de terror, mas vai longe o tempo em que uma história de vampiro tinha que dar medo. Os vampiros ganharam status romântico, símbolo de uma humanidade transcendente, através do qual se pode discutir uma infinidade de situações dramáticas que, ainda que possíveis com a narrativa realista, ganham laivos contrastantes que permitem abordagens mais amplas, como em toda a ficção fantástica. Essa receita já se apresenta também com outros personagens típicos da literatura de horror, e a escritora e artista gráfica Giulia Moon tem dado colaboração importante ao modelo.
Autora das coletâneas Luar de vampiros (Scortecci, 2003) e Vampiros no espelho & outros seres obscuros (Landy, 2004), Giulia montou uma variada coleção de monstrinhos adoravelmente líricos, tão poéticos e suaves que bem poderiam estar em livros infantis. Justifica-se a autora que diz morrer de medo de assombração.
Do mesmo modo, os onze contos que compõe A dama-morcega agradam tanto ao leitor habituado ao gênero do horror quanto aquele que geralmente teme o estranho. Os horrores de Giulia Moon são ternos e familiares, imagens de sonho que estranham, mas não aterrorizam, que assustam um pouquinho, mas não causam pesadelos, e carregam o leitor para aquele período iluminado da vida, quando o canto escuro do quintal era tão aconchegante em seu mistério que sonhamos em um dia poder voltar a ele.
O prefácio do volume é assinado por ninguém menos que o mestre do horror brasileiro, o escritor multimídia Rubens Francisco Lucchetti, que escreveu a maior parte dos roteiros de cinema para os filmes de José Mojica Marins e Ivan Cardoso, e que, em parceria com outro mestre do horror, o ilustrador Nico Rosso, deu forma a boa parte da mitologia brasileira dos vampiros nas histórias em quadrinhos das revistas de terror ao longo dos anos 1960/70. Apesar de importante, Lucchetti é atencioso com os apreciadores de horror, e seu entusiasmo com o trabalho de Giulia Moon é, sem dúvida, sincero. E qualquer livro que tenha um prefácio desse calibre já começa bem. Também colabora com a boa impressão o cuidado gráfico do volume, em formato de bolso, com uma belíssima capa aveludada e diagramação limpa e elegante.
Depois de uma pequeníssima introdução, só mesmo para situar o leitor desavisado, Giulia apresenta o conto "Luna errante", uma história de lobisomens, mais exatamente de uma lobisomem às avessas. Ela vive a maior parte do tempo com sua alcateia, em forma de lobo e, eventualmente, transforma-se em mulher para caminhar entre os homens de vida curta, fazer amor com eles e, talvez, comê-los. Sua maldição não é ser loba, mas ter se apaixonado sinceramente em uma de suas aventuras na cidade dos homens. Um homem que desaparece, deixando-a infeliz em sua vida de loba, até que muito tempo depois, ele reaparece, heroico e envelhecido, para cumprir sua promessa de amor que, entretanto, não vai apagar a tristeza do coração da loba.
O segundo conto é o melhor de toda a antologia, por resumir perfeitamente todo o conjunto de propostas estéticas e líricas que Giulia ensaiou no volume. "Júnior e seu gnuko" conta a história do menino Júnior e seu amigo invisível. Esse amigo, entretanto, apesar de divertido, não é lá muito bem intencionado. Vive propondo brincadeiras estranhas que quase sempre implicam em algum tipo de vivissecção. Mas Júnior é um bom menino e mantêm seu amigo invisível, a quem chama de Gnuko, bem comportado. Mas um dia as coisas fogem do controle, Gnuko materializa-se, enorme, bem no meio do pátio da escola, pondo a garotada em polvorosa. Júnior mantêm-se firme, mas parece que sua autoridade não será suficiente para controlá-lo desta vez. Uma história assustadora e divertida, narrada com singeleza e sensibilidade.
A seguir temos "O vampiro e a donzela", em que a autora volta ao seu monstrinho favorito. Uma vampira envolvente apaixona-se por um homem, mas ele ama outra mulher e a despreza. Ela passa a persegui-lo e torturá-lo, até reduzi-lo a farrapos. Então, finalmente, o seduz para depois matá-lo, mas não executa o plano e o abandona, moribundo, para descobrir que, contra todos os prognósticos, ela ficou grávida dele. Apesar do tratamento inovador, a história parece prometer mais naquilo que não contou: seria uma boa história erótica, se devidamente recheada das cenas picantes de praxe, mas seria ainda melhor se mostrasse o tipo de gravidez e descendência que essa vampira teria.
"Perdido" é uma narrativa típica de Além da imaginação, de fato há muitas histórias nesse seriado que são semelhantes a ela, por isso é uma história previsível. O que lhe dá substância é a narrativa calorosa e lírica. Um menino se desencontra de sua turma de excursão, perde o ônibus e fica vagando na estrada, sem destino. Conforme caminha, confabula consigo mesmo, meio choramingando, meio praguejando. Tem um encontro soturno e, quando está prestes a entrar em pânico, o ônibus finalmente volta para pegá-lo, pois ele não podia ficar pra trás. De jeito nenhum.
O conto seguinte não é fantástico. Trata-se de uma espécie de homenagem aos gatos, esses seres estranhos que algumas pessoas gostam de ter por companhia e que já inspiraram diversas histórias deliciosas. Em "O paraíso", um gato vê sua realidade virar de cabeça para baixo quando a violência humana macula a cozinha em que ele mora. Toda placidez de seu caráter, moldado por uma vida de conforto e bem estar, submerge na ferocidade animal ao ver sua dona ser atacada por um estuprador. O leitor que já teve um gato em sua vida, certamente vai se emocionar com esta história.
Em "O ser obscuro", uma mulher que não tem muito o que fazer espiona seu vizinho esquisitão. Não há como não se identificar com um e outro, típicos habitantes citadinos, daqueles que gostam de viver sozinhos ou em meio aos livros. Uma noite, o esquisitão bate a porta da mulher. Ele está apavorado com algo que rasteja em sua biblioteca. A casa do homem é, em si, um panorama de fantasia: livros velhos por toda parte, em estantes, espalhados pelo chão, caídos e amontoados. Um monte deles emana uma presença ameaçadora, que apavora o homem. Uma história para apavorar os ratos de sebo, mas que tem o efeito contrário: afinal, que rato de sebo não sonha encontrar o seu próprio exemplar do Necronomicon perdido em alguma estante empoeirada, por uma bagatela?
"O herói e o diabrete" apropria-se de um personagem criado por um outro autor, Adriano Siqueira, o editor do site Adorável Noite no qual Giulia estreou o seu trabalho literário. Apesar do conto não o nomear, trata-se de Valente, um cavaleiro medieval heróico, como devem ser os cavaleiros medievais, mas um tanto convencido e tolo, que vai enfrentar uma bruxa poderosa. Ele leva em seu ombro um diabrete inútil, que só faz dar trabalho, mas se revela a arma secreta que derrota o monstro. Porém, o herói não poderá colher os louros de sua vitória. Como sempre, morre em circunstâncias desagradáveis e acaba sendo escravizado por seu diabrete, agora transformado num grande demônio, a qual terá de servir, acorrentado em seu ombro. A história é divertida, bem contada e tem imagens vívidas, mas é um bolo com cerejinhas que só os frequentadores do Adorável Noite vão saborear completamente.
Maya, a vampira preferida de Giulia, retorna no conto novaiorquino "Perigosa ilusão". A predadora, que tem uma paixão doentia por seu mordomo, decide arrumar um sósia do mesmo para, em seu fim-de-semana de folga, realizar algumas de suas fantasias. O conto tem sustentação própria, mas parece depender um tanto dos trabalhos com a personagem vistos em outros livros. Não se explica o porquê de Maya ter esse desvio de conduta e como o mordomo mantêm o poder sobre ela. Para quem vê a coisa de fora, como no meu caso, parece uma espécie de variação a um possível platonismo entre Bruce Wayne, o Batman, e seu mordomo Alfred. Uma brincadeirinha de internet que, como no conto anterior, só quem é iniciado vai aproveitar.
"A tia madrinha" é outra variação, desta vez sobre as histórias de fadas. Não chega a ser um conto, é mais uma vinheta de aproximadamente 700 palavras, na qual um demônio chamado Gertrudes conta como e porque resolveu poupar uma de suas vítimas, um menino com potencial psicopata, para mais tarde transformá-lo também num monstro.
"A dama-morcega" é o conto mais longo e mais elaborado do volume. Inspirado na primeira mulher-gorila dos freak shows brasileiros – a quem é dedicado –, conta a história de uma vampira mantida em cativeiro para exibição em um circo de aberrações na São Paulo do início do século XX. Numa apresentação, é vista por um médico que atesta a autenticidade da criatura, ao mesmo tempo que se encanta por ela. A vampira consegue iludir o tratador e o mata, mas o médico a captura e passa então a mantê-la prisioneira em seu laboratório, onde recebe visitas de um amigo confidente. Aos poucos o médico enlouquece, enquanto a vampira recupera sua beleza, segurança e, finalmente, a liberdade. Há muitas citações e homenagens no conto, mas não assumem a preponderância da narrativa, que tem méritos próprios.
"Pé-de-moleque em dezembro" encerra a coletânea, outro conto muito curto que narra o encontro de Saci Pererê com o menino Jesus numa certa noite de Natal. Não há um enredo para além do diálogo filosófico entre os dois protagonistas, mas o conto é forte e merecia mais destaque pois, de certa maneira, homenageia o modernismo, tão polêmico no meio dos autores de ficção fantástica brasileira.
Disse R. F. Lucchetti sobre Giulia Moon, no prefácio: "Fiquei encantado com essa jovem criatura das trevas". A dama-morcega é uma leitura agradável, divertida e, como disse o mestre, encantadora.
Ao longo dos primeiros anos deste século, evoluiu um novo subgênero na ficção fantástica, para além da ficção científica, do horror e da fantasia: a ficção vampírica, que se justifica pela grande quantidade de romances com vampiros publicados. Nesse modelo, temos ficções alternativa, científica, de horror e de fantasia, cada qual usando instrumental próprio mas, invariavelmente, prestando sua homenagem a esse que é um dos principais mitos modernos.
Dentro deste subgênero, é claro que se destacam as histórias de terror, mas vai longe o tempo em que uma história de vampiro tinha que dar medo. Os vampiros ganharam status romântico, símbolo de uma humanidade transcendente, através do qual se pode discutir uma infinidade de situações dramáticas que, ainda que possíveis com a narrativa realista, ganham laivos contrastantes que permitem abordagens mais amplas, como em toda a ficção fantástica. Essa receita já se apresenta também com outros personagens típicos da literatura de horror, e a escritora e artista gráfica Giulia Moon tem dado colaboração importante ao modelo.
Autora das coletâneas Luar de vampiros (Scortecci, 2003) e Vampiros no espelho & outros seres obscuros (Landy, 2004), Giulia montou uma variada coleção de monstrinhos adoravelmente líricos, tão poéticos e suaves que bem poderiam estar em livros infantis. Justifica-se a autora que diz morrer de medo de assombração.
Do mesmo modo, os onze contos que compõe A dama-morcega agradam tanto ao leitor habituado ao gênero do horror quanto aquele que geralmente teme o estranho. Os horrores de Giulia Moon são ternos e familiares, imagens de sonho que estranham, mas não aterrorizam, que assustam um pouquinho, mas não causam pesadelos, e carregam o leitor para aquele período iluminado da vida, quando o canto escuro do quintal era tão aconchegante em seu mistério que sonhamos em um dia poder voltar a ele.
O prefácio do volume é assinado por ninguém menos que o mestre do horror brasileiro, o escritor multimídia Rubens Francisco Lucchetti, que escreveu a maior parte dos roteiros de cinema para os filmes de José Mojica Marins e Ivan Cardoso, e que, em parceria com outro mestre do horror, o ilustrador Nico Rosso, deu forma a boa parte da mitologia brasileira dos vampiros nas histórias em quadrinhos das revistas de terror ao longo dos anos 1960/70. Apesar de importante, Lucchetti é atencioso com os apreciadores de horror, e seu entusiasmo com o trabalho de Giulia Moon é, sem dúvida, sincero. E qualquer livro que tenha um prefácio desse calibre já começa bem. Também colabora com a boa impressão o cuidado gráfico do volume, em formato de bolso, com uma belíssima capa aveludada e diagramação limpa e elegante.
Depois de uma pequeníssima introdução, só mesmo para situar o leitor desavisado, Giulia apresenta o conto "Luna errante", uma história de lobisomens, mais exatamente de uma lobisomem às avessas. Ela vive a maior parte do tempo com sua alcateia, em forma de lobo e, eventualmente, transforma-se em mulher para caminhar entre os homens de vida curta, fazer amor com eles e, talvez, comê-los. Sua maldição não é ser loba, mas ter se apaixonado sinceramente em uma de suas aventuras na cidade dos homens. Um homem que desaparece, deixando-a infeliz em sua vida de loba, até que muito tempo depois, ele reaparece, heroico e envelhecido, para cumprir sua promessa de amor que, entretanto, não vai apagar a tristeza do coração da loba.
O segundo conto é o melhor de toda a antologia, por resumir perfeitamente todo o conjunto de propostas estéticas e líricas que Giulia ensaiou no volume. "Júnior e seu gnuko" conta a história do menino Júnior e seu amigo invisível. Esse amigo, entretanto, apesar de divertido, não é lá muito bem intencionado. Vive propondo brincadeiras estranhas que quase sempre implicam em algum tipo de vivissecção. Mas Júnior é um bom menino e mantêm seu amigo invisível, a quem chama de Gnuko, bem comportado. Mas um dia as coisas fogem do controle, Gnuko materializa-se, enorme, bem no meio do pátio da escola, pondo a garotada em polvorosa. Júnior mantêm-se firme, mas parece que sua autoridade não será suficiente para controlá-lo desta vez. Uma história assustadora e divertida, narrada com singeleza e sensibilidade.
A seguir temos "O vampiro e a donzela", em que a autora volta ao seu monstrinho favorito. Uma vampira envolvente apaixona-se por um homem, mas ele ama outra mulher e a despreza. Ela passa a persegui-lo e torturá-lo, até reduzi-lo a farrapos. Então, finalmente, o seduz para depois matá-lo, mas não executa o plano e o abandona, moribundo, para descobrir que, contra todos os prognósticos, ela ficou grávida dele. Apesar do tratamento inovador, a história parece prometer mais naquilo que não contou: seria uma boa história erótica, se devidamente recheada das cenas picantes de praxe, mas seria ainda melhor se mostrasse o tipo de gravidez e descendência que essa vampira teria.
"Perdido" é uma narrativa típica de Além da imaginação, de fato há muitas histórias nesse seriado que são semelhantes a ela, por isso é uma história previsível. O que lhe dá substância é a narrativa calorosa e lírica. Um menino se desencontra de sua turma de excursão, perde o ônibus e fica vagando na estrada, sem destino. Conforme caminha, confabula consigo mesmo, meio choramingando, meio praguejando. Tem um encontro soturno e, quando está prestes a entrar em pânico, o ônibus finalmente volta para pegá-lo, pois ele não podia ficar pra trás. De jeito nenhum.
O conto seguinte não é fantástico. Trata-se de uma espécie de homenagem aos gatos, esses seres estranhos que algumas pessoas gostam de ter por companhia e que já inspiraram diversas histórias deliciosas. Em "O paraíso", um gato vê sua realidade virar de cabeça para baixo quando a violência humana macula a cozinha em que ele mora. Toda placidez de seu caráter, moldado por uma vida de conforto e bem estar, submerge na ferocidade animal ao ver sua dona ser atacada por um estuprador. O leitor que já teve um gato em sua vida, certamente vai se emocionar com esta história.
Em "O ser obscuro", uma mulher que não tem muito o que fazer espiona seu vizinho esquisitão. Não há como não se identificar com um e outro, típicos habitantes citadinos, daqueles que gostam de viver sozinhos ou em meio aos livros. Uma noite, o esquisitão bate a porta da mulher. Ele está apavorado com algo que rasteja em sua biblioteca. A casa do homem é, em si, um panorama de fantasia: livros velhos por toda parte, em estantes, espalhados pelo chão, caídos e amontoados. Um monte deles emana uma presença ameaçadora, que apavora o homem. Uma história para apavorar os ratos de sebo, mas que tem o efeito contrário: afinal, que rato de sebo não sonha encontrar o seu próprio exemplar do Necronomicon perdido em alguma estante empoeirada, por uma bagatela?
"O herói e o diabrete" apropria-se de um personagem criado por um outro autor, Adriano Siqueira, o editor do site Adorável Noite no qual Giulia estreou o seu trabalho literário. Apesar do conto não o nomear, trata-se de Valente, um cavaleiro medieval heróico, como devem ser os cavaleiros medievais, mas um tanto convencido e tolo, que vai enfrentar uma bruxa poderosa. Ele leva em seu ombro um diabrete inútil, que só faz dar trabalho, mas se revela a arma secreta que derrota o monstro. Porém, o herói não poderá colher os louros de sua vitória. Como sempre, morre em circunstâncias desagradáveis e acaba sendo escravizado por seu diabrete, agora transformado num grande demônio, a qual terá de servir, acorrentado em seu ombro. A história é divertida, bem contada e tem imagens vívidas, mas é um bolo com cerejinhas que só os frequentadores do Adorável Noite vão saborear completamente.
Maya, a vampira preferida de Giulia, retorna no conto novaiorquino "Perigosa ilusão". A predadora, que tem uma paixão doentia por seu mordomo, decide arrumar um sósia do mesmo para, em seu fim-de-semana de folga, realizar algumas de suas fantasias. O conto tem sustentação própria, mas parece depender um tanto dos trabalhos com a personagem vistos em outros livros. Não se explica o porquê de Maya ter esse desvio de conduta e como o mordomo mantêm o poder sobre ela. Para quem vê a coisa de fora, como no meu caso, parece uma espécie de variação a um possível platonismo entre Bruce Wayne, o Batman, e seu mordomo Alfred. Uma brincadeirinha de internet que, como no conto anterior, só quem é iniciado vai aproveitar.
"A tia madrinha" é outra variação, desta vez sobre as histórias de fadas. Não chega a ser um conto, é mais uma vinheta de aproximadamente 700 palavras, na qual um demônio chamado Gertrudes conta como e porque resolveu poupar uma de suas vítimas, um menino com potencial psicopata, para mais tarde transformá-lo também num monstro.
"A dama-morcega" é o conto mais longo e mais elaborado do volume. Inspirado na primeira mulher-gorila dos freak shows brasileiros – a quem é dedicado –, conta a história de uma vampira mantida em cativeiro para exibição em um circo de aberrações na São Paulo do início do século XX. Numa apresentação, é vista por um médico que atesta a autenticidade da criatura, ao mesmo tempo que se encanta por ela. A vampira consegue iludir o tratador e o mata, mas o médico a captura e passa então a mantê-la prisioneira em seu laboratório, onde recebe visitas de um amigo confidente. Aos poucos o médico enlouquece, enquanto a vampira recupera sua beleza, segurança e, finalmente, a liberdade. Há muitas citações e homenagens no conto, mas não assumem a preponderância da narrativa, que tem méritos próprios.
"Pé-de-moleque em dezembro" encerra a coletânea, outro conto muito curto que narra o encontro de Saci Pererê com o menino Jesus numa certa noite de Natal. Não há um enredo para além do diálogo filosófico entre os dois protagonistas, mas o conto é forte e merecia mais destaque pois, de certa maneira, homenageia o modernismo, tão polêmico no meio dos autores de ficção fantástica brasileira.
Disse R. F. Lucchetti sobre Giulia Moon, no prefácio: "Fiquei encantado com essa jovem criatura das trevas". A dama-morcega é uma leitura agradável, divertida e, como disse o mestre, encantadora.
domingo, 12 de março de 2023
Resenha do Almanaque: Anjos, mutantes e dragões, Ivanir Calado
Anjos, mutantes e dragões, Ivanir Calado. 296 páginas. Coleção Pulsar. São Paulo: Devir Livraria, 2010.
Ivanir Calado, escritor carioca de Nova Friburgo, é dono de um trabalho significativo dentro dos gêneros fantásticos. Estreou em 1985, com os romances infantojuvenis O grilo do grilo e A salamandra de jade.
Em 1990 publicou A mãe do sonho, jornada de horror ao estilo de Stephen King, com mitologia indígena em doses generosas. Em 1992, publicou a novela juvenil O lago da memória e o romance histórico A imperatriz do fim do mundo que, embora seja pouco lembrado dentro do fandom, teve boa acolhida no mainstream e serviu de referência para a minissérie global O quinto dos infernos.
Depois de um período de dez anos sem um novo livro, Calado publicou em 2002 o romance de fantasia A caverna dos titãs e mais cinco anos depois, O mundo das sombras: O nascimento do vampiro. Os longos intervalos entre os livros foram ocupados com a publicação muitos contos publicados em diversas antologias.
Anjos, mutantes e dragões é resultado da reunião desses contos em um único volume. O livro, publicado pela Devir Livraria em sua Coleção Pulsar, foi dividido pelo organizador Roberto de Sousa Causo, em cinco capítulos distintos, cada um voltado para um momento específico do trabalho do autor.
O primeiro comporta um único conto, o perturbador "Paradoxo de Narciso", publicado originalmente em 1991 no extinto periódico Isaac Asimov Magazine. O texto narra um encontro muito íntimo de um viajante do tempo consigo mesmo.
A segunda parte apresenta três noveletas, que foram publicadas em 1994 na coleção Fatos e Relatos, da Ediouro. Os contos foram escritos por encomenda a partir de sugestões da organizadora da coleção, Helena Rodarte. "O refém" parte de uma premissa algo convencional na literatura moderna, a violência urbana e a marginalidade. Uma dupla de delinquentes invade um apartamento e faz um garoto como refém. Assustado, o menino tem sua mente perturbada por uma aventura imaginária na qual ele é o piloto de uma espaçonave sendo sequestrado por alienígenas beligerantes. As duas narrativas vão se sobrepondo até o leitor ter dúvidas sobre qual delas é a real.
"Tia Moira" é mais lírica, mas não deixa de guardar uma certa familiaridade com o naturalismo mainstream. Conta o drama de uma família de classe média que se vê agitada pelas previsões de Moira, uma tia solteirona viciada em telenovelas. O imponderável surge quando um dos filhos nota que as previsões da Tia Moira sobre uma telenovela estão se manifestando em sua própria vida. A ideia não é inédita na fc, mas é realizada com muita classe e identidade, sendo um dos pontos altos do volume.
Em "O anjo", Calado volta ao tema das viagens no tempo, contando a história do principal líder da sociedade de um Rio de Janeiro futuro e utópico, que acredita que seu sucesso é fruto das desgraças passadas de sua vida. O dilema se impõe quando chega a ele um artefato revolucionário que pode permitir que evite suas tragédias pessoais, arriscando porém a integridade do futuro positivista que ajudou a construir. Tal como em "O refém", o leitor será parte importante no desfecho da narrativa.
A terceira parte da antologia é composta por sete contos curtos dedicados a cada um dos pecados capitais. Os textos também foram resultado da encomenda de Helena Rodarte, e publicados em 1995 na coleção Eles são sete, da Ediouro. Quatro contos acontecem no mesmo universo. "Bobo (A ira)" é uma história pungente, sobre uma civilização alienígena dominada por um governo totalitário em que uma casta de humoristas propositalmente deformada apresenta um espetáculo autorizado de crítica ao governo. "O dia do dragão (Preguiça)" é quase uma releitura de O hobitt, de J. R. R. Tolkien. Numa aldeia escravizada por um dragão, um jovem é escolhido para ser a oferenda anual que vai alimentar o monstro. Decidido a não morrer sem luta, resolve atacar o dragão de surpresa e matá-lo. Em "Kilumbo (Orgulho)" e "A volta do dragão (Avareza)", um ancião de uma raça alienígena conta ao neto histórias de seu passado. São estas duas narrativas que amarram as quatro num único contexto cenográfico.
As outras três histórias são independentes. Em "Operação Lobo (A gula)" ex-espiões da guerra fria trocam confidências numa mesa de bar e um deles conta uma de suas aventuras mais secretas. "Não é por inveja (Inveja)" é uma narrativa em primeira pessoa, na qual um estudante e seu melhor amigo passam pela vida acadêmica numa relação de amor e ódio que, por falta de sinceridade, pode culminar em tragédia. "Avthar (Luxúria)" fecha o capítulo como o melhor conto dessa série. Um menino chega a puberdade e desenvolve o poder de restaurar a vida animal e vegetal a sua volta quando tem orgasmos. Porém, os sacerdotes do lugar não concordam com o valor de seus milagres e o banem para uma ilha deserta até que ele consiga purificar seu poder.
A quarta parte da antologia traz dois contos publicados em 2000 na coleção Aventura no tempo, da Editora Record, em referência aos 500 anos do descobrimento do Brasil. "Foi assim (Talvez)" é uma interessante reconstrução do Brasil pré-cabralino e romantiza o encontro dos hoje extintos Homens do Sambaqui com uma desconhecida raça de índios mais forte e melhor equipada. O segundo conto é "A carta do filho da puta", uma narrativa epistolar na qual um grumete analfabeto escreve uma carta imaginária a sua mãe, igualmente analfabeta, contando seus sofrimentos, dissabores e alegrias vividos durante a viagem da esquadra de Cabral ao Brasil, em 1500, da qual ele fazia parte.
A quinta e última parte apresenta dois textos, sendo o primeiro o único texto inédito da antologia, o conto "Eleanor Rigby", inspirado numa canção da banda britânica The Beatles, originalmente escrita para compor uma antologia temática de autores fãs nos anos 1980, que nunca foi publicada. O texto destaca-se também por ser o único no qual o autor fez experiências formais, com frases inacabadas e períodos truncados.
Fecha o volume a notável novela cyberpunk "O altar dos nossos corações", publicado originalmente na antologia lusófona O Atlântico tem duas margens (Caminho, 1993), que consagrou Ivanir entre os grande nomes da fc&f nacional. A história fala sobre a corrupção do governo brasileiro, as trapaças, armações, acordos escusos e o controle da verdade pela mídia, em meio a uma sociedade desonesta e violenta controlada pelo crime organizado. Escrita há duas décadas, a novela continua atual e impactante.
Ivanir Calado que, além de escritor, é músico, compositor, tradutor e diretor de teatro, confirma nesta antologia todas as qualidades autorais demonstradas em seus romances. Um trabalho que agrada tanto aos jovens quanto aos veteranos leitores de fc&f, pois navega em todos os gêneros com desenvoltura e qualidade. Um volume que certamente vai satisfazer até aos leitores mais exigentes.
Ivanir Calado, escritor carioca de Nova Friburgo, é dono de um trabalho significativo dentro dos gêneros fantásticos. Estreou em 1985, com os romances infantojuvenis O grilo do grilo e A salamandra de jade.
Em 1990 publicou A mãe do sonho, jornada de horror ao estilo de Stephen King, com mitologia indígena em doses generosas. Em 1992, publicou a novela juvenil O lago da memória e o romance histórico A imperatriz do fim do mundo que, embora seja pouco lembrado dentro do fandom, teve boa acolhida no mainstream e serviu de referência para a minissérie global O quinto dos infernos.
Depois de um período de dez anos sem um novo livro, Calado publicou em 2002 o romance de fantasia A caverna dos titãs e mais cinco anos depois, O mundo das sombras: O nascimento do vampiro. Os longos intervalos entre os livros foram ocupados com a publicação muitos contos publicados em diversas antologias.
Anjos, mutantes e dragões é resultado da reunião desses contos em um único volume. O livro, publicado pela Devir Livraria em sua Coleção Pulsar, foi dividido pelo organizador Roberto de Sousa Causo, em cinco capítulos distintos, cada um voltado para um momento específico do trabalho do autor.
O primeiro comporta um único conto, o perturbador "Paradoxo de Narciso", publicado originalmente em 1991 no extinto periódico Isaac Asimov Magazine. O texto narra um encontro muito íntimo de um viajante do tempo consigo mesmo.
A segunda parte apresenta três noveletas, que foram publicadas em 1994 na coleção Fatos e Relatos, da Ediouro. Os contos foram escritos por encomenda a partir de sugestões da organizadora da coleção, Helena Rodarte. "O refém" parte de uma premissa algo convencional na literatura moderna, a violência urbana e a marginalidade. Uma dupla de delinquentes invade um apartamento e faz um garoto como refém. Assustado, o menino tem sua mente perturbada por uma aventura imaginária na qual ele é o piloto de uma espaçonave sendo sequestrado por alienígenas beligerantes. As duas narrativas vão se sobrepondo até o leitor ter dúvidas sobre qual delas é a real.
"Tia Moira" é mais lírica, mas não deixa de guardar uma certa familiaridade com o naturalismo mainstream. Conta o drama de uma família de classe média que se vê agitada pelas previsões de Moira, uma tia solteirona viciada em telenovelas. O imponderável surge quando um dos filhos nota que as previsões da Tia Moira sobre uma telenovela estão se manifestando em sua própria vida. A ideia não é inédita na fc, mas é realizada com muita classe e identidade, sendo um dos pontos altos do volume.
Em "O anjo", Calado volta ao tema das viagens no tempo, contando a história do principal líder da sociedade de um Rio de Janeiro futuro e utópico, que acredita que seu sucesso é fruto das desgraças passadas de sua vida. O dilema se impõe quando chega a ele um artefato revolucionário que pode permitir que evite suas tragédias pessoais, arriscando porém a integridade do futuro positivista que ajudou a construir. Tal como em "O refém", o leitor será parte importante no desfecho da narrativa.
A terceira parte da antologia é composta por sete contos curtos dedicados a cada um dos pecados capitais. Os textos também foram resultado da encomenda de Helena Rodarte, e publicados em 1995 na coleção Eles são sete, da Ediouro. Quatro contos acontecem no mesmo universo. "Bobo (A ira)" é uma história pungente, sobre uma civilização alienígena dominada por um governo totalitário em que uma casta de humoristas propositalmente deformada apresenta um espetáculo autorizado de crítica ao governo. "O dia do dragão (Preguiça)" é quase uma releitura de O hobitt, de J. R. R. Tolkien. Numa aldeia escravizada por um dragão, um jovem é escolhido para ser a oferenda anual que vai alimentar o monstro. Decidido a não morrer sem luta, resolve atacar o dragão de surpresa e matá-lo. Em "Kilumbo (Orgulho)" e "A volta do dragão (Avareza)", um ancião de uma raça alienígena conta ao neto histórias de seu passado. São estas duas narrativas que amarram as quatro num único contexto cenográfico.
As outras três histórias são independentes. Em "Operação Lobo (A gula)" ex-espiões da guerra fria trocam confidências numa mesa de bar e um deles conta uma de suas aventuras mais secretas. "Não é por inveja (Inveja)" é uma narrativa em primeira pessoa, na qual um estudante e seu melhor amigo passam pela vida acadêmica numa relação de amor e ódio que, por falta de sinceridade, pode culminar em tragédia. "Avthar (Luxúria)" fecha o capítulo como o melhor conto dessa série. Um menino chega a puberdade e desenvolve o poder de restaurar a vida animal e vegetal a sua volta quando tem orgasmos. Porém, os sacerdotes do lugar não concordam com o valor de seus milagres e o banem para uma ilha deserta até que ele consiga purificar seu poder.
A quarta parte da antologia traz dois contos publicados em 2000 na coleção Aventura no tempo, da Editora Record, em referência aos 500 anos do descobrimento do Brasil. "Foi assim (Talvez)" é uma interessante reconstrução do Brasil pré-cabralino e romantiza o encontro dos hoje extintos Homens do Sambaqui com uma desconhecida raça de índios mais forte e melhor equipada. O segundo conto é "A carta do filho da puta", uma narrativa epistolar na qual um grumete analfabeto escreve uma carta imaginária a sua mãe, igualmente analfabeta, contando seus sofrimentos, dissabores e alegrias vividos durante a viagem da esquadra de Cabral ao Brasil, em 1500, da qual ele fazia parte.
A quinta e última parte apresenta dois textos, sendo o primeiro o único texto inédito da antologia, o conto "Eleanor Rigby", inspirado numa canção da banda britânica The Beatles, originalmente escrita para compor uma antologia temática de autores fãs nos anos 1980, que nunca foi publicada. O texto destaca-se também por ser o único no qual o autor fez experiências formais, com frases inacabadas e períodos truncados.
Fecha o volume a notável novela cyberpunk "O altar dos nossos corações", publicado originalmente na antologia lusófona O Atlântico tem duas margens (Caminho, 1993), que consagrou Ivanir entre os grande nomes da fc&f nacional. A história fala sobre a corrupção do governo brasileiro, as trapaças, armações, acordos escusos e o controle da verdade pela mídia, em meio a uma sociedade desonesta e violenta controlada pelo crime organizado. Escrita há duas décadas, a novela continua atual e impactante.
Ivanir Calado que, além de escritor, é músico, compositor, tradutor e diretor de teatro, confirma nesta antologia todas as qualidades autorais demonstradas em seus romances. Um trabalho que agrada tanto aos jovens quanto aos veteranos leitores de fc&f, pois navega em todos os gêneros com desenvoltura e qualidade. Um volume que certamente vai satisfazer até aos leitores mais exigentes.