O incansável quadrinhista paraibano Emir Ribeiro apresenta aos seu leitores, logo nos primeiros dias do ano, duas novas edições de sua personagem mais importante, a superpoderosa detetive Velta.
Velta: Contos da super-detetive nº4 segue em sua missão de republicar, em ordem cronológica, toda a saga da personagem. Esta edição traz a história "Detetives", publicada originalmente nos números 4 e 5 do fanzine 10-Abafo no longínquo ano de 1979. A capa apenas reproduz a original da época, portanto as histórias de Itabira e Homem-Barata nela anunciadas não fazem parte desta edição.
Velta 2020 é uma publicação bem mais ousada, pois leva a personagem a uma narrativa erótica, com cenas de sexo incomuns nas histórias da personagem. A edição parece ter sido feita sob medida para os antigos leitores que sempre quiseram ver Velta nas cenas "calientes" que só eram sugeridas, então está aqui a oportunidade. A edição também marca o que o autor chama de "fim de temporada", ou seja, a partir de agora, as histórias de Velta devem iniciar um novo arco em que praticamente tudo pode acontecer.
Para obter as publicações é preciso entrar em contato diretamente com Emir pelo email emir.ribeiro@gmail.com, pois elas ainda não se encontram no catálogo online do autor, aqui.
quarta-feira, 22 de janeiro de 2020
segunda-feira, 20 de janeiro de 2020
Memórias do Tico-Tico
Nada melhor que comemorar o Dia do Quadrinho Nacional (30 de janeiro) que ler estas publicações especialíssimas sobre a arte dos nossos maiores quadrinhistas.
Memórias d’O Tico-Tico: Juquinha, Giby e Miss Shocking, é um belíssimo álbum publicado em 2013 no volume 123 das Edições do Senado Federal, com pesquisa e texto Athos Eichler Cardoso.
O livro tem 210 páginas fartamente ilustradas com imagens raras do saudoso semanário infantil, uma das publicações mais longevas dos quadrinhos brasileiros, que apresentou a nata dos artistas daqueles anos pioneiros. Nesta edição, o foco é a obra de J. Carlos, especialmente aqueles que são tidos como os primeiros personagens infantis dos nossos quadrinhos: Juquinha (inspirado em Buster Brown, mas que ganhou identidade própria com o tempo), Miss Shocking e o famigerado Giby que, de tanto sucesso que fez, acabou por emprestar o nome à própria arte como um todo. Além da versão impressa, o livro está integralmente disponível para download gratuito no site da Livraria do Senado.
Aproveite a visita para obter, também gratuitamente, a versão virtual de As aventuras de Nhô-Quim e Zé Caipora: os primeiros quadrinhos brasileiros 1869-1883, volume 44 das Edições do Senado Federal, publicado em 2013. Este álbum de 202 páginas, também organizado por Cardoso, traz as duas principais histórias que o piermontês Angelo Agostini produziu para as revistas Vida Fluminense, Don Quixote e O Malho, sendo um dos primeiros exemplos da arte dos quadrinhos no mundo.
Ambas as edições impressas em acabamento de luxo valem muito a pena adquirir.
Memórias d’O Tico-Tico: Juquinha, Giby e Miss Shocking, é um belíssimo álbum publicado em 2013 no volume 123 das Edições do Senado Federal, com pesquisa e texto Athos Eichler Cardoso.
O livro tem 210 páginas fartamente ilustradas com imagens raras do saudoso semanário infantil, uma das publicações mais longevas dos quadrinhos brasileiros, que apresentou a nata dos artistas daqueles anos pioneiros. Nesta edição, o foco é a obra de J. Carlos, especialmente aqueles que são tidos como os primeiros personagens infantis dos nossos quadrinhos: Juquinha (inspirado em Buster Brown, mas que ganhou identidade própria com o tempo), Miss Shocking e o famigerado Giby que, de tanto sucesso que fez, acabou por emprestar o nome à própria arte como um todo. Além da versão impressa, o livro está integralmente disponível para download gratuito no site da Livraria do Senado.
Aproveite a visita para obter, também gratuitamente, a versão virtual de As aventuras de Nhô-Quim e Zé Caipora: os primeiros quadrinhos brasileiros 1869-1883, volume 44 das Edições do Senado Federal, publicado em 2013. Este álbum de 202 páginas, também organizado por Cardoso, traz as duas principais histórias que o piermontês Angelo Agostini produziu para as revistas Vida Fluminense, Don Quixote e O Malho, sendo um dos primeiros exemplos da arte dos quadrinhos no mundo.
Ambas as edições impressas em acabamento de luxo valem muito a pena adquirir.
Curtos & Fantásticos
Antologia de contos fantásticos classificados no primeiro concurso de contos do podcast Diário de Escrita, do site Papo de Autor. O livro tem 112 páginas e apresenta textos de Ana Cristina Rodrigues, Carlos Perini, Danilo Sarcinelli, Davide Di Benedetto, Farrel Kautely, Francine Cândido, Gabriel Scarssi Krupp, Iago Ramon Möller, João Lucas Gontijo Fraga, João Victor Teixeira, John Elton, Karen Soarele, Luiz Calmon, Ricardo Kruchinski, Sario Ferreira, Taís Turaça Arantes, Vicente Gomes Pinto, Vinicius Mendes, Waldir Léo Santos e Wesnen Tellurian, com organização de Karen Soarele, Vinicius Mendes e Wesnen Telluria.
A antologia está disponível em formato eletrônico e pode ser baixada gratuitamente em formato pdf, epub e azw3, mas já conta também com a edição impressa publicada ainda em 2019 no selo Odisseias da Editora Jambô.
A antologia está disponível em formato eletrônico e pode ser baixada gratuitamente em formato pdf, epub e azw3, mas já conta também com a edição impressa publicada ainda em 2019 no selo Odisseias da Editora Jambô.
Conexão Literatura 55
Está disponível o número 55 da revista eletrônica Conexão Literatura, editada por Ademir Pascale.
A revista tem 64 páginas e destaca o trabalho da dupla de escritoras paraenses Jaqueline e Micheline Ramos, que trabalham juntas sob o pseudônimo de JackMichel.
A edição traz uma entrevista com o escritor Raimundo Colares Ribeiro, contos de Míriam Santiago, Gilmar Duarte Rocha e Roberto Schima, poemas de Alfredo Morais Neto, Luiza Moura, Roberto Shima, Marcos Pereira dos Santos, Alexandre da Silva Camêlo Rurikovich Carvalho e Edson Kogut, artigos de Marcos Pereira dos Santos, Cida Simka, Sérgio Simka e Rafael Botter. Dicas e divulgação completam a edição.
Conexão Literatura é uma publicação gratuita e pode ser baixada aqui. Edições anteriores também estão disponíveis.
A revista tem 64 páginas e destaca o trabalho da dupla de escritoras paraenses Jaqueline e Micheline Ramos, que trabalham juntas sob o pseudônimo de JackMichel.
A edição traz uma entrevista com o escritor Raimundo Colares Ribeiro, contos de Míriam Santiago, Gilmar Duarte Rocha e Roberto Schima, poemas de Alfredo Morais Neto, Luiza Moura, Roberto Shima, Marcos Pereira dos Santos, Alexandre da Silva Camêlo Rurikovich Carvalho e Edson Kogut, artigos de Marcos Pereira dos Santos, Cida Simka, Sérgio Simka e Rafael Botter. Dicas e divulgação completam a edição.
Conexão Literatura é uma publicação gratuita e pode ser baixada aqui. Edições anteriores também estão disponíveis.
segunda-feira, 6 de janeiro de 2020
Astrogildo
A partir da crise dos jornais impressos, na virada do século, as tiras de quadrinhos se tornaram um produto cada vez mais raro. Para não sumir de vez, a maioria dos autores de tiras migrou para a internet. E, dentre as que ainda sobrevivem, são ainda mais raras aquelas de ficção científica.
Este é o caso de Astrogildo, do cartunista Rafael Bento. Inspirado em Calvin e Haroldo, de Bill Watterson, Astrogildo é um estudante ingênuo e sonhador que deseja se tornar astronauta e no seu caminho vai encontrando diversos desafios que muito revelam sobre o nosso tempo.
Astrogildo chegou a centésima tirinha em 2019 e já tem dois volumes impressos publicados, que podem ser adquiridos diretamente com o autor pelo email rafaelbento@gmail.com.
Mais do personagem no perfil do autor, aqui.
Este é o caso de Astrogildo, do cartunista Rafael Bento. Inspirado em Calvin e Haroldo, de Bill Watterson, Astrogildo é um estudante ingênuo e sonhador que deseja se tornar astronauta e no seu caminho vai encontrando diversos desafios que muito revelam sobre o nosso tempo.
Astrogildo chegou a centésima tirinha em 2019 e já tem dois volumes impressos publicados, que podem ser adquiridos diretamente com o autor pelo email rafaelbento@gmail.com.
Mais do personagem no perfil do autor, aqui.
domingo, 5 de janeiro de 2020
Espere agora pelo ano passado
Espere agora pelo ano passado (Now wait for last year), Philip K. Dick. Tradução de Braulio Tavares, 296 páginas. Rio de Janeiro: Suma, 2018.
Comentei no post anterior, sobre a novela O tempo desconjuntado, que falaria dos últimos livros do Philip K. Dick publicados no Brasil. Esta resenha é, portanto, sobre outro título do autor, Espere agora pelo ano passado (Now wait for last year), romance publicado originalmente em 1966 que estava inédito em língua portuguesa e chegou ao Brasil em 2018 pelo selo Suma da Editora Companhia das Letras, com tradução de Braulio Tavares.
Diferentemente do título anteriormente comentado, este é, sem dúvida, um exemplo perfeito e acabado do estilo dickiano potencializado no formato de romance, em que há mais de um núcleo narrativo.
A história está centrada no casal Sweetscent. Eric é um médico importante e Katherine, sua esposa, é executiva de uma grande corporação. O casal está passando por uma crise e a separação parece iminente. Nesse momento, Eric é convocado para tratar de um paciente muito especial em uma cidade distante, alguém que ele não pode se dar ao luxo de recusar: trata-se de ninguém menos que o presidente do planeta Terra, cujo corpo está entrando em falência geral depois de ter abusado de diversos tratamentos para prolongar sua vida por séculos. E o homem não pode morrer justamente quando precisa participar de uma importante negociação com a delegação de um planeta alienígena com o qual a Terra mantém uma guerra prolongada.
Com a ausência do futuro ex-marido, Katherine decide fazer aquilo que mais gosta, e investe numa droga nova que promete uma profunda experiência mística. A droga é de fato tudo o que prometia e mais um pouco: ela também permite viajar no tempo! O problema é que se trata de uma substância altamente viciante e tóxica: se ela não tomar outra dose em 24 horas, morrerá, e se continuar tomando, morrerá em uma semana da mesma forma. Desesperada, Katherine pede socorro a Eric que, para ajudá-la, compromete sua missão e torna-se procurado pelo assassinato do presidente da Terra. Para salvar a ambos, a Terra e talvez o seu casamento – o que parece impossível –, Eric terá que desvendar o que está por trás da estranha droga e se envolver no mortal jogo de espionagem interplanetária.
PKD coloca na mesa todas as suas cartas: paranoia, intrigas políticas, um crime a ser desvendado, drogas, a fragilidade da mente, a natureza da realidade e do tempo, e uma corrida alucinada em que cada segundo conta. As linhas de ação nem sempre se interligam, o que cria abismos narrativos que o leitor precisará cruzar para entender o que está acontecendo e, para isso, terá de construir as pontes, que podem mudar a interpretação da história de um leitor para outro, ou de um mesmo leitor em momentos diversos.
Muitos podem achar que isso seja fruto de um problema de tradução ou de edição, mas é improvável. Braulio Tavares é um grande tradutor e especialista no gênero, e a edição da Suma é caprichosa, com encadernação em capa dura e o requinte da pungente ilustração de Fabrizio Lenci. Não há espaço aqui para falhas. Resta, portanto, a alternativa de que a obra foi feita assim propositalmente pelo autor, e decerto que é isso mesmo. PKD tem diversos livros com características similares, alguns um pouco mais que outros, e este é um dos "mais". Para aqueles que conseguirem superar esta corrida de obstáculos, o resultado é gratificante, um exemplo perfeito do tipo de ficção que influenciou uma infinidade de autores que vieram depois, especialmente o movimento cyberpunk, com o qual PKD é muitas vezes identificado como precursor. Mesmo que fosse só por isso – há muitos outros motivos além desse – penso que vale a pena o esforço.
Comentei no post anterior, sobre a novela O tempo desconjuntado, que falaria dos últimos livros do Philip K. Dick publicados no Brasil. Esta resenha é, portanto, sobre outro título do autor, Espere agora pelo ano passado (Now wait for last year), romance publicado originalmente em 1966 que estava inédito em língua portuguesa e chegou ao Brasil em 2018 pelo selo Suma da Editora Companhia das Letras, com tradução de Braulio Tavares.
Diferentemente do título anteriormente comentado, este é, sem dúvida, um exemplo perfeito e acabado do estilo dickiano potencializado no formato de romance, em que há mais de um núcleo narrativo.
A história está centrada no casal Sweetscent. Eric é um médico importante e Katherine, sua esposa, é executiva de uma grande corporação. O casal está passando por uma crise e a separação parece iminente. Nesse momento, Eric é convocado para tratar de um paciente muito especial em uma cidade distante, alguém que ele não pode se dar ao luxo de recusar: trata-se de ninguém menos que o presidente do planeta Terra, cujo corpo está entrando em falência geral depois de ter abusado de diversos tratamentos para prolongar sua vida por séculos. E o homem não pode morrer justamente quando precisa participar de uma importante negociação com a delegação de um planeta alienígena com o qual a Terra mantém uma guerra prolongada.
Com a ausência do futuro ex-marido, Katherine decide fazer aquilo que mais gosta, e investe numa droga nova que promete uma profunda experiência mística. A droga é de fato tudo o que prometia e mais um pouco: ela também permite viajar no tempo! O problema é que se trata de uma substância altamente viciante e tóxica: se ela não tomar outra dose em 24 horas, morrerá, e se continuar tomando, morrerá em uma semana da mesma forma. Desesperada, Katherine pede socorro a Eric que, para ajudá-la, compromete sua missão e torna-se procurado pelo assassinato do presidente da Terra. Para salvar a ambos, a Terra e talvez o seu casamento – o que parece impossível –, Eric terá que desvendar o que está por trás da estranha droga e se envolver no mortal jogo de espionagem interplanetária.
PKD coloca na mesa todas as suas cartas: paranoia, intrigas políticas, um crime a ser desvendado, drogas, a fragilidade da mente, a natureza da realidade e do tempo, e uma corrida alucinada em que cada segundo conta. As linhas de ação nem sempre se interligam, o que cria abismos narrativos que o leitor precisará cruzar para entender o que está acontecendo e, para isso, terá de construir as pontes, que podem mudar a interpretação da história de um leitor para outro, ou de um mesmo leitor em momentos diversos.
Muitos podem achar que isso seja fruto de um problema de tradução ou de edição, mas é improvável. Braulio Tavares é um grande tradutor e especialista no gênero, e a edição da Suma é caprichosa, com encadernação em capa dura e o requinte da pungente ilustração de Fabrizio Lenci. Não há espaço aqui para falhas. Resta, portanto, a alternativa de que a obra foi feita assim propositalmente pelo autor, e decerto que é isso mesmo. PKD tem diversos livros com características similares, alguns um pouco mais que outros, e este é um dos "mais". Para aqueles que conseguirem superar esta corrida de obstáculos, o resultado é gratificante, um exemplo perfeito do tipo de ficção que influenciou uma infinidade de autores que vieram depois, especialmente o movimento cyberpunk, com o qual PKD é muitas vezes identificado como precursor. Mesmo que fosse só por isso – há muitos outros motivos além desse – penso que vale a pena o esforço.
sexta-feira, 3 de janeiro de 2020
O tempo desconjuntado
O tempo desconjuntado (Time out of joint), Philip K. Dick. Tradução de Braulio Tavares, 268 páginas. Rio de Janeiro: Suma, 2018.
Enquanto aguardamos o lançamento de O tempo em Marte, romance de ficção científica do escritor americano Philip K. Dick (1928-1982), anunciado para 2020 pela Editora Aleph, vamos falar um pouco sobre os últimos livros desse autor publicados no Brasil.
PKD é um autor singular. Mais conhecido pelo livro Sonham androides com ovelhas elétricas, que deu origem ao filme Blade Runner: O caçador de andróides, de Ridley Scott, lançado no ano da morte do autor e um fracasso de bilheteria que aos poucos ganhou status de cult, Dick foi um autor prolífico no período da New Wave da fc americana. Seus romances e contos inspiraram uma leva de filmes e série de tv (como O vingador do futuro, Paycheck, Minority report, O homem do castelo alto e Electric dreams, entre outros), e pode dar a impressão que se trata de um escritor popular. Não é.
PKD tem o desagradável hábito de escrever histórias difíceis. Seu estilo é desconfortável, muitas vezes beirando o insuportável, e seus temas são complexificados a um ponto hiperbólico. São raras as histórias do autor que permitem uma interpretação sequer objetiva, muito menos fácil. Além do mais, tem momentos de profunda incorreção moral, intolerância e até algum chauvinismo. Mesmo assim, consegue flutuar acima de seus pecados graças a criatividade galopante que não faz concessões aos leitores. Ler e, principalmente, publicar PKD pode até não ser muito lucrativo, mas garante uma boa reputação, semelhante como ao que acontece com Willian Gibson, um dos pais do cyberpunk.
A primeira vez que tive um PKD nas mãos foi uma experiência frustrante. Estava com 14 anos e em minha primeira fase de interesse na fc, quando encontrei um livro do autor no acervo da biblioteca pública, Espaço eletrônico (The unteleported man), na edição da Bruguera de 1971. Li o livro inteiro mas não entendi absolutamente nada. Não era um problema com o livro, mas com o leitor: eu não estava pronto para ele. E há muitos livros de PKD que são assim, então é difícil recomendar o autor para leitores iniciantes no gênero.
Contudo, entre tantas histórias indecifráveis, sempre há alguma que pode ser lida com menor esforço. Uma dessas é O tempo desconjuntado (Time out of joint), novela de 1959 publicada no Brasil em 2018 pelo selo Suma da Editora Companhia das Letras. O romance teve uma edição portuguesa em 1985, sob o título de O homem mais importante do mundo, mas até então estava inédito aqui.
Conta a história de Ragle Gumm, homem fracassado, de meia idade, que vive na casa da irmã e passa os dias resolvendo quebra-cabeças de um concurso do jornal local. Gumm está quebrando os recordes de acertos do concurso, o que pode lhe render uma bolada em prêmios que talvez resolva sua vida, além de alguma fama, mas também o mantém socialmente isolado.
Gumm está inquieto com a repetição de fenômenos visuais estranhos e recordações incongruentes, que até podem ser frutos de estresse por sua concentração nos enigmas diários cada vez mais complexos. Depois de testemunhar o desaparecimento de uma barraca de refrigerantes no parque – que deixou em seu lugar apenas um pedaço de papel com as palavras "barraca de refrigerantes" –, ele tem absoluta certeza que está enlouquecendo. Tudo fica ainda pior quando ele encontra, num terreno baldio, uma lista telefônica com números que não deveriam existir. Acossado pela paranoia, Gumm está disposto a comprometer sua fama e fortuna para descobrir o que há por trás dessa realidade que fica cada vez mais estranha.
A edição da Suma é caprichada, impressa em papel pólen e encadernada em capa dura. A tradução é de Braulio Tavares, um especialista no gênero, e a maravilhosa capa é de Deco Farkas.
Se eu tivesse que indicar um livro de PKD para alguém que nunca leu o autor, por certo que indicaria O tempo desconjuntado. Não que seja um texto fácil, mas em se tratando de PKD, não dá para fazer por menos que isso.
Enquanto aguardamos o lançamento de O tempo em Marte, romance de ficção científica do escritor americano Philip K. Dick (1928-1982), anunciado para 2020 pela Editora Aleph, vamos falar um pouco sobre os últimos livros desse autor publicados no Brasil.
PKD é um autor singular. Mais conhecido pelo livro Sonham androides com ovelhas elétricas, que deu origem ao filme Blade Runner: O caçador de andróides, de Ridley Scott, lançado no ano da morte do autor e um fracasso de bilheteria que aos poucos ganhou status de cult, Dick foi um autor prolífico no período da New Wave da fc americana. Seus romances e contos inspiraram uma leva de filmes e série de tv (como O vingador do futuro, Paycheck, Minority report, O homem do castelo alto e Electric dreams, entre outros), e pode dar a impressão que se trata de um escritor popular. Não é.
PKD tem o desagradável hábito de escrever histórias difíceis. Seu estilo é desconfortável, muitas vezes beirando o insuportável, e seus temas são complexificados a um ponto hiperbólico. São raras as histórias do autor que permitem uma interpretação sequer objetiva, muito menos fácil. Além do mais, tem momentos de profunda incorreção moral, intolerância e até algum chauvinismo. Mesmo assim, consegue flutuar acima de seus pecados graças a criatividade galopante que não faz concessões aos leitores. Ler e, principalmente, publicar PKD pode até não ser muito lucrativo, mas garante uma boa reputação, semelhante como ao que acontece com Willian Gibson, um dos pais do cyberpunk.
A primeira vez que tive um PKD nas mãos foi uma experiência frustrante. Estava com 14 anos e em minha primeira fase de interesse na fc, quando encontrei um livro do autor no acervo da biblioteca pública, Espaço eletrônico (The unteleported man), na edição da Bruguera de 1971. Li o livro inteiro mas não entendi absolutamente nada. Não era um problema com o livro, mas com o leitor: eu não estava pronto para ele. E há muitos livros de PKD que são assim, então é difícil recomendar o autor para leitores iniciantes no gênero.
Contudo, entre tantas histórias indecifráveis, sempre há alguma que pode ser lida com menor esforço. Uma dessas é O tempo desconjuntado (Time out of joint), novela de 1959 publicada no Brasil em 2018 pelo selo Suma da Editora Companhia das Letras. O romance teve uma edição portuguesa em 1985, sob o título de O homem mais importante do mundo, mas até então estava inédito aqui.
Conta a história de Ragle Gumm, homem fracassado, de meia idade, que vive na casa da irmã e passa os dias resolvendo quebra-cabeças de um concurso do jornal local. Gumm está quebrando os recordes de acertos do concurso, o que pode lhe render uma bolada em prêmios que talvez resolva sua vida, além de alguma fama, mas também o mantém socialmente isolado.
Gumm está inquieto com a repetição de fenômenos visuais estranhos e recordações incongruentes, que até podem ser frutos de estresse por sua concentração nos enigmas diários cada vez mais complexos. Depois de testemunhar o desaparecimento de uma barraca de refrigerantes no parque – que deixou em seu lugar apenas um pedaço de papel com as palavras "barraca de refrigerantes" –, ele tem absoluta certeza que está enlouquecendo. Tudo fica ainda pior quando ele encontra, num terreno baldio, uma lista telefônica com números que não deveriam existir. Acossado pela paranoia, Gumm está disposto a comprometer sua fama e fortuna para descobrir o que há por trás dessa realidade que fica cada vez mais estranha.
A edição da Suma é caprichada, impressa em papel pólen e encadernada em capa dura. A tradução é de Braulio Tavares, um especialista no gênero, e a maravilhosa capa é de Deco Farkas.
Se eu tivesse que indicar um livro de PKD para alguém que nunca leu o autor, por certo que indicaria O tempo desconjuntado. Não que seja um texto fácil, mas em se tratando de PKD, não dá para fazer por menos que isso.
quarta-feira, 1 de janeiro de 2020
O lado sombrio do sítio
Um dos fatos mais esperados para 2019 era que a obra de Monteiro Lobato, escritor que o Brasil perdeu em 1948, caíssem em domínio público pois, pela lei brasileira, a obra de um autor deixa de ser propriedade privada de seus herdeiros a partir do dia 1 de janeiro do ano subsequente aos 70 anos da morte do mesmo. Há muito tempo que autores que cresceram lendo os livros de Lobato tinham intenções em citar, homenagear, reler ou mesmo samplear suas histórias, especialmente aquelas do ciclo do Picapau Amarelo, que se tornou uma franquia de sucesso para várias gerações.
E 2019 não deixou por menos. Por exemplo, Narizinho: A menina mais querida do Brasil, do escritor Pedro Bandeira, oferece uma versão atualizada das histórias do Picapau Amarelo, retirando expressões racistas, empretecendo Narizinho e deliberadamente excluindo Pedrinho das histórias. E nos quadrinhos, tivemos o Rancho do Corvo Dourado, que levou os personagens a uma distopia apocalíptica.
O fandom literário de ficção fantástica também debruçou-se na obra lobatiana com a antologia O lado sombrio do sítio, organizado por Felipe S. Mendes para a editora Lura. Como o título já revela, trata-se de uma releitura de Lobato em tons de horror. O volume de 288 páginas traz 43 textos de autores como Mayara de Godoy, Rômulo Baron, João Peçanha, Wanise Martinez e André Vianco.
Resta saber o que os administradores da propriedade intelectual de Lobato acham disso tudo. Como se pode ver no episódio 56 do podcast Poranduba, "Folclore e direitos autorais", a exploração de obras em domínio público pode não ser tão livre quanto se acredita.
E 2019 não deixou por menos. Por exemplo, Narizinho: A menina mais querida do Brasil, do escritor Pedro Bandeira, oferece uma versão atualizada das histórias do Picapau Amarelo, retirando expressões racistas, empretecendo Narizinho e deliberadamente excluindo Pedrinho das histórias. E nos quadrinhos, tivemos o Rancho do Corvo Dourado, que levou os personagens a uma distopia apocalíptica.
O fandom literário de ficção fantástica também debruçou-se na obra lobatiana com a antologia O lado sombrio do sítio, organizado por Felipe S. Mendes para a editora Lura. Como o título já revela, trata-se de uma releitura de Lobato em tons de horror. O volume de 288 páginas traz 43 textos de autores como Mayara de Godoy, Rômulo Baron, João Peçanha, Wanise Martinez e André Vianco.
Resta saber o que os administradores da propriedade intelectual de Lobato acham disso tudo. Como se pode ver no episódio 56 do podcast Poranduba, "Folclore e direitos autorais", a exploração de obras em domínio público pode não ser tão livre quanto se acredita.